Texto de algumas das últimas arguições
PERFIS DA JUSFILOSOFIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
Arguição da Dissertação de Doutoramento em Filosofia da Mestre Ana Paula Loureiro de Sousa, O Pensamento Filosófico-Jurídico Português Contemporâneo, na Universidade Nova de Lisboa, em 15 de Março de 2004
As disciplinas e as subdisciplinas - os estudos - , têm, na linha sinuosa das suas histórias, planícies
de rotina e calmaria, assim como zénites de apogeu. Há momentos singulares, há marcos, há viragens e há culminações. Assim
como existem declínios e travessias do deserto da decadência e do olvido. O tom pomposo não convém às provas académicas, que
devem ser, segundo velhas tradições medievas, sobretudo simplicidade e rigor da dialéctica, e por isso banca de trabalho de
artesãos mais novos e mais velhos. Mas não posso eximir-me contudo a uma reflexão preliminar sobre o significado deste acto
de hoje. Tal como, em 1910, a conferência Idealismo e Direito, desse restaurador
que foi Paulo Merêa, ainda estudante terceiranista de Direito em Coimbra, tal como o luminoso ensaio de Braz Teixeira, A filosofia jurídica portuguesa actual, prémio Artur Malheiros de Ciências Jurídicas
da Academia das Ciências de Lisboa, em 1959, tal como a publicação da monumental História
do Pensamento Filosófico Português, dirigida por Pedro Calafate, entre 1999 e 2000, este é um momento alto, um acontecimento,
um marco da Filosofia Jurídica em Portugal e da Filosofia Jurídica Portuguesa. E por isso é também um passo significativo
na Filosofia em Portugal e na Filosofia Portuguesa. Se é que estes especiosismos disjuntivos ainda fazem algum sentido
Há precisamente um mês e meio, em Espanha, tive a honra de fazer parte de outro júri, com candidato
português, e aí por unanimidade se revelou a nossa altíssima capacidade filosófica actual, a par com a originalidade da nossa
reflexão filosófica no século XIX. Hoje é do século recém-passado (com prolongamento neste) que cura a tese em apreço, e perante
júri nacional me parece ir provar-se como houve e há filosofia jurídica em Portugal. Assim mais uma vez se provando quão irónica
era a afirmação desses pioneiros da filosofia portuguesa que insistiam na nossa ausência colectiva de propensão filosófica.
Como a própria autora não deixa de muito certeiramente sublinhar, a seu modo, na própria conclusão
da sua tese, um dos pontos que desde já considero ficar assente hoje é que a filosofia do direito dos juristas e a filosofia
do direito dos filósofos são passíveis de mútua superação, numa filosofia do direito tout
court, que não é objecto de coutadas epistémicas, melhor, de congregações académicas, mas verdadeiro sujeito, protagonista
autónomo, pensado por quem, vindo de onde vier, tem amor da sabedoria profunda sobre e da juridicidade. Aliás, a tese e a
sua autora, bem como os seus orientadores, são vivo exemplo da superação dessa antinomia, que teve o seu sentido e fez a sua
época: a autora vem da Filosofia para a Filosofia do Direito, alguns dos autores estudados vão do Direito para a Filosofia,
outros da Filosofia para o Direito (ou a sua filosofia), o Prof. Esteves Pereira é um filósofo e historiador da cultura que
conhece profundissimamente coisas do Direito e as sabe como muitos juristas as não conhecem, hélas!, e do Prof. Braz Teixeira direi, se mo permitirem, que não sei o que é mais de elogiar, se o jurista com
uma particular sensibilidade prática, de legislador e de administrador, se o filósofo puro, de altíssimo rigor, se o jusfilósofo
agudíssimo.
Fosse apenas esta a conclusão prática deste trabalho, já todos teríamos ganho muito. Mas está muito
para além o conjunto de benefícios que esta dissertação nos traz.
É muito difícil arguir este estudo, pela sua qualidade, que desde já afirmo ser altíssima, mas também
pela sua própria natureza. É que não se trata, a nosso ver, de uma tese em sentido puro, mas de uma dissertação que comunga
de vários estilos.
O pano de fundo, ou, mudando de metáfora, a corrente principal do rio do seu discurso, é a nosso
ver a exposição quase didáctica, que não ficaria mal a um manual de Filosofia do Direito Portuguesa Contemporânea. Intercalando-se,
ou afluindo a esse rio principal, temos trechos de correntes de ensaísmo, de comentário, de síntese, de comparação, encontrando-se
os elementos de tese sobretudo concentrados na conclusão. Na verdade, um bom tratado do assunto.
Nada disto constitui crítica, mas a verdade é que um estudo assim urdido e ele é, aliás, quase perfeito
no plano formal, como veremos se furta em larguíssima medida à crítica. É em geral muitíssimo feliz e fidedigno o testemunho
e a interpretação das ideias dos autores convocados, as interpretações são equilibradas e prudentes, a bibliografia adequada,
o plano de recorte claro queda-se o arguente no maior dos apuros, porque, se não há-de criticar os autores elencados, porque
não são eles que pedem doutoramento, fica frequentemente face a uma autora que fala muito pela voz deles, e quando afirma
a sua voz, se encontra escudada pelo coro canoro de autoridades sonantes, pisando terreno seguríssimo e não se aventurando
a arrojos que pudessem atrair polémica.
Isto não significa, porém, que a dissertação seja uma antologia, embora se revele uma preciosidade
nas citações que contém. Isto não significa que a autora não exprima um pensamento, e não haja tecido com material próprio
o fio das contas deste colar de pérolas. Pelo contrário. Há até na tese, além do seu próprio existir, que já não é pequeno
arrojo, alguns traços concretos de coragem. Cite-se apenas, por exemplo, logo a pp. 5, a afirmação do abandono e desvalorização
da filosofia do direito quer pelas Faculdades de Direito, quer pelos seus representantes, juristas, advogados e juízes (sic), ou a pp. 20, uma consideração sobre a esterilidade e inutilidade das reflexões
numa Faculdade de Direito num dado período, ou o deplorar, a p. 311, a falta de contacto dos estudantes de direito com a filosofia.
São proposições verdadeiras mas academicamente incorrectas, que devo louvar. Apesar de hoje estarmos entre filósofos, óptima
companhia.
Há porém muito a louvar e pouco a objectar. Continuarei, assim, pelos louvores, procurando salientar
agora sobretudo os formais. Mas não deixarei de apontar alguns pequenos reparos, a propósito.
Antes de mais, apraz-me por intuição recordar o estilo francês de orientação de tese e digo francês
porque o conheci em França, na minha primeira tese de doutoramento. Creio que não errarei se disser que se nota aqui a mão
amiga, presente, municiosa, de um acompanhamento directo da orientação. Não estamos perante uma dessas teses que acabam por
surpreender os próprios orientadores Não sendo os co-orientadores co-autores, não são aqui co-demandados, e menos ainda co-réus.
Mas essa proximidade entre a orientação e o autor da tese revela-se em vários aspectos, e é já mais de meio caminho andado
para o sucesso da empresa.
Não vou perguntar como já vi fazer no estrangeiro quem teve a ideia da tese, ou quem elaborou o
plano, porque, fosse como fosse, ambos a doutoranda assume. Quero sim felicitar pelo plano, não só externo como interno, desde
os grandes aos pequenos títulos, desde a ordem da exposição, o enquadramento filosófico geral a preceder, em cada autor, a
respectiva filosofia jurídica, as notas de rodapé iniciais, de índole bio-bibliográfica (o que aliás facilita as citações
ulteriores das respectivas obras), a importância dada e o cuidado posto na notícia da evolução das ideias dos autores, etc.
Apenas uma ou outra vez não foi para mim claro porque certa citação deveria estar em nota e não no texto, ou vice-versa. Mas
tal sucedeu raramente
Acresce
e tal é hoje um louvor muito mais relevante que há uns anos que a tese não só está correctamente escrita, como está bem escrita,
e é de leitura agradável. Com efeito, sou dos que sobre teses e outros textos do mais severo estudo partilham a tese de Guilherme
Braga da Cruz sobre estilo e rigor: Há autores para quem o valor literário e o valor científico parecem ser
incompatíveis dentro da mesma obra, considerando-os inversamente proporcionais um ao outro; chegam a medir o valor literário
pela vacuidade da prosa e o valor científico pela obscuridade da exposição (...). Afirma ainda a convicção de que
um bom trabalho de investigação científica pode ser, ao mesmo tempo, um bom trabalho literário e que, desse modo, pode ler-se
um livro por deleite, sem que o facto constitua um passatempo inútil, e pode ler-se um livro por necessidade
científica, sem que a leitura se transforme num pesado suplício.
Só
para exemplificar, refira-se que o estilo cuidado vai ao ponto de encontrar fórmulas variadas para referir cada autor, como
o jusfilósofo bolonhês (Del Vecchio), o mestre conimbricense, etc., o que nos bárbaros dias que correm é um luxo esquisito
de purismo. Fico apenas na dúvida sobre Baptista Machado, que oscila entre jusfilósofo português, a pp. 209, e pensador de
Coimbra, a pp. 215. Não seria sem qualquer bairrismo, é óbvio - ao mesmo título
ao menos, pensador bracarense e jusfilósofo do Porto? Ainda no capítulo do estilo fico muito contente por não haver aqui daqueles
paralelepípedos de linguagem, de que falava o sábio João de Araújo Correia. Apenas uma ligeira incomodidade com uma formulação
em toda a tese: em termos de política, a pp. 175, n. 2. Este em termos, tão usado e abusado, é que não condiz com o tom geral
Mas é caso único.
Deve ainda sublinhar-se
uma objectividade e uma proscrição da erudição adventícia e farfalhuda, que é a todos os títulos de louvar. As notas não servem
para mostrar que se leu (ou não) este mundo e o outro, mas para documentar, esclarecer, desenvolver, matizar expressamente
o afirmado no corpo do texto. Uma única excepção a isto e mesmo assim moderada é a nota 21 de p.207, sobre bioética, que parece
deslocada, por superabundante. E aqui, em rigor, quod abundat nocet.
Há
contudo uma ausência excessiva das referências concretas a páginas, em algumas notas de rodapé, o que faz muita falta. São
os casos, por exemplo, das notas: 1 e 2 do Prefácio, 55 na p. 79, 66 na p. 86, 15 na p. 93, 26 na p. 190, etc.
A referida qualidade geral
engendra, porém, uma dificuldade. É que, por vezes, apreciaríamos certos saltos comparativos, sobretudo com autores estrangeiros
não necessariamente filósofos puros ou clássicos, muitas vezes com outros filósofos do direito. E essa mobilidade ou agilidade
transnacional normalmente falta com excepções, porém, como a de Miguel Reale, ou, mais criativamente ainda, entre Pinto de
Mesquita, por uma lado, e Karl Popper e Thomas Kuhn, por outro, a p. 15. Mas seria de prosseguir com algumas transposições
e cotejos. Embora conceda que, realmente, uma tese que tudo comparasse fosse uma caleidoscópica biblioteca de Babel.
Alguns
exemplos. A propósito da oposição de Merêa a Duguit sobre os direitos subjectivos (p. 18 ss.), todo historiador da filosofia
do direito terá natural tendência a recordar-se da questão da génese nominalista daquela categoria jurídica, e designadamente
dos estudos, a tal propósito, de um Michel Villey. Que aliás vão ter muita importância para a questão em aberto do final da
dissertação, sobre a dificuldade de fundamentação hodierna dos direitos humanos. E já que aludimos a este autor francês, um
outro ponto. Falando de Baptista Machado, conclui-se a p. 210: Com efeito, o pensamento tópico-retórico, bem como a teoria
da argumentação são os verdadeiros meios pelos quais o discurso jurídico se constitui, uma vez que só através deles se alcança
a realidade axiológico-normativa do direito. Como? Porquê? Uma vez que Villey afirma que o direito natural não é senão um
método, e Baptista Machado acaba por propugnar um novo (ou redescoberto) direito natural, será que nesse espaço do discurso
os dois se encontram e assim se reencontrará esse esquivo cisne de Goethe?
Mais
exemplos. Interessante seria averiguar se a teoria das relações entre ser e dever-ser em Vieira de Almeida (pp. 30-31) tem
relação com a falácia naturalística. E não seria de invocar Montesquieu e a sua concepção de lei, no seu sentido mais geral
relações necessárias que derivam da natureza das coisas - , comparando com a teoria das leis civis e científicas daquele autor?
A concepção de Hermano Saraiva (p. 33) não poderia ser comparada com a teoria trifuncional do Direito? Ainda quando Delfim
Santos afirma (apud p. 172) que a justiça procura-se porque não existe () não sei
em que medida o jurista de formação romanista que o lesse não pensaria automaticamente na fórmula subtil de o dizer que é
a de Ulpiano: sendo a justiça constans et perpetua voluntas, essa vontade de atribuição
do seu a seu dono é assim constante e perpétua (tem de sê-lo) porque nunca se consegue cabalmente cumprir
Neste sentido, também é de assinalar um certo
confinamento excessivo às fontes filosóficas (a prova é de Filosofia, mas nihil humanii),
sobretudo quando pelo menos para os juristas, mas também, por exemplo, quiçá para historiadores certas questões podem comportar
também um tratamento extra-filosófico mais ou menos evidente. Tal é o caso da questão da soberania, tratada a propósito do
pensamento de António José de Brito (p. 306), aliás uma das poucas incursões em matéria mais juspolítica, e que poderiam quiçá
merecer também maior referência de outro tipo de fontes: de um clássico Jean Bodin à recente e monumental tese de Raquel Kritsch, por exemplo, a qual, não sendo filosofia portuguesa contemporânea, é, sem dúvida, pensamento jurídico
contemporâneo em língua portuguesa.
Mas, mesmo no domínio de fontes filosóficas, pode pensar-se que a focalização rigorosa no objecto,
muito de saudar, terá impedido alguma abertura de janelas. Por exemplo, pareceria natural uma simples referência a Teilhard
de Chardin quando se invoca a noosfera (domínio específico do ser espiritual que
é o homem, depois da litosfera e da biosfera), a propósito de Baptista Machado (p. 197, n. 3).
Mesmo no próprio seio do pensamento português, o esforço comparativo, que dentro do conjunto de
autores estudado é feito pari passo com escrúpulo, poderia ter ido um pouco mais
longe, levando por diante uma simples associação livre de ideias. Falando apenas de autores tratados expressamente, creio
que teria sido útil uma compararação entre a antropologia jurídica de Langhans (p. 109 ss.) e a de Baptista Machado: polarizando
a luta com os instintos humanos inespecíficos,
por exemplo. Também quando se fala da genealogia da propriedade em Orlando Vitorino (p.326), e da metamorfose desta desde
os tempos mais remotos, se não se exigiria que se recuasse às intuições luminosas de Marcel Mauss (que aliás aquele não ignora),
já nos parece teria sido interessante uma nota de comparação com um autor como Afonso Botelho na sua Teoria do Amor e da Morte, que foca de igual modo a temática da propriedade e da proprietarização. Além do próprio
Agostinho da Silva, que tem textos ímpares sobre o direito na sua relação com a propriedade.
Creio aliás que se justificaria uma maior presença desses pensadores portugueses não juristas de
profissão ou cátedra que, tal como Orlando Vitorino ou Augusto Saraiva, também aqui e ali embora mais esparsamente ainda (mas
com conteúdo não desinteressante), se debruçaram sobre o Direito: como Agostinho da Silva, Afonso Botelho, Pinharanda Gomes.
Sobre todos eles, aliás, existe já algum começo de bibliografia sobre tal temática
E neste capítulo de eventuais ausências, importaria que a temática fosse alargada ao juspolítico,
ou, no mínimo, ao político-constitucional, por exemplo muito interessante em alguns dos autores aqui tratados, como Álvaro
Ribeiro ou Orlando Vitorino.
Uma coisa são ecos dos outros nos autores considerados, ecos reais ou ecos que imaginamos, ou simples
associações de ideias. Outra coisa interessante seria a tentativa de perseguir as ideias deles nos outros, ou, mais plausivelmente,
as similitudes e confluências do pensamento destes que hoje aqui discutimos, pela sua mão, e outros mais. Recordo apenas um
exemplo: a ideia de democracia como um progresso, mais do que como um facto feito não é coisa totalmente original, e por isso
não terá marca registada para Álvaro Ribeiro, mas não pude deixar de pensar em Democracia
e Utopia, de António Barbosa de Melo, quando reli o seu sublinhado a essa perspectiva alvarina.
Estamos perante um trabalho pensado, amadurecido, e é rara qualquer afirmação não documentada. Gostaríamos,
porém, de ver mais esclarecida a maior costela kantiana que fenomenológica em Moncada a p. 47, n. 14: um lapidar julgamos
que não, ainda que decerto conduzido pelo óbvio, deixa água na boca de mais desenvolvimentos.
E feitas estas observações, passemos a mais directo diálogo com a doutoranda, que escolherá comentar
o que lhe parecer, com inteira liberdade.
Muitas foram as sugestões sugeridas pela rica sua dissertação, Mestre Ana Paula Loureiro de Sousa,
na qual convocou altíssimos espíritos.
1. Desde logo depois da poética e verdadeira citação de Abranches do Soveral - afirmou, a pp. 6 ter consciência de que o problema da filosofia do direito se torna o próprio problema da
filosofia. Iria a doutoranda mais longe, com Pinharanda Gomes, subscrevendo que:
O direito em Portugal revela, como muitas ciências não revelam, a vida e a situação da filosofia.
Se nada soubéssemos da filosofia em Portugal mas soubéssemos da história do direito, poderíamos elaborar o quadro das teses
e das escolas que, em diferentes épocas, foram as da filosofia. ?
E como ligaria essas afirmações com a do final da tese, a pp. 359, quando, um pouco surpreendentemente,
é certo, nos desvenda que O direito é parte da filosofia? Em que medida ecoa nessa afirmação a tese romanística segundo a
qual os juristas são os verdadeiros filósofos, por na prática testarem e praticarem a filosofia, e não os que praticam um
simulacro verbal do filosofar?
Mas outros depõem nesta questão, e ao longo deste estudo. Por exemplo, António José de Brito afirma
(cit. a p. 288): a interrogação acerca da filosofia do direito é uma interrogação eminentemente filosófica que nasce e obtém
resposta na própria filosofia e, por isso, a filosofia jurídica não é teoria geral do direito. Certamente que não é. Mas introduzamos
a preocupação: a filosofia do direito não será direito? Ou também direito? Pode haver direito sem qualquer filosofia do direito,
em si? Ou o direito pede a sua filosofia ao exterior? Haverá alguma analogia possível entre este problema e a visão da questão
de facto e da questão de direito em Castanheira Neves? Daí poderemos retirar, por redescrição ao menos, algum sopro inspirador?
E da divisão entre quid iuris e quid ius?
Quanto kantismo anda envolto na divisão clara entre direito e a sua filosofia? E que contributo para a questão fornecerá Orlando
Vitorino ao afirmar que (apud p. 311, n. 11): o direito se constitui como sujeito
de filosofia ().
2. Outro tema. Parece que o positivismo é o lado de lá, o negativo, destes autores. Fica-se justamente
com a impressão de que captou no positivismo português uma feição especial (p. 10). Talvez fosse de ir mais longe, como foi
feito, aliás, para o caso, já muito estudado, de Abel Salazar, procurando outras singularidades do pensamento positivista
sobre o Direito, desde logo no Teófilo da Poesia do Direito, mas quiçá também no
próprio pensamento de Amorim de Carvalho, que cumpre este ano o seu centenário.
3. O tempo está bem presente neste estudo, que é em grande medida histórico. Se não podia adivinhar-se
o infausto evento do falecimento de Orlando Vitorino, que por isso naturalmente falta na n. 1 da p. 308, há contudo algumas
relações com o tempo chamemos-lhes assim - que me deixam motivo para alguma reflexão.
A propósito de Delfim Santos, diz-se, a p. 172: () o filósofo vai acolher a definição de Platão
sobre a justiça como dar a cada um aquilo que é seu.
Abona a origem platónica Orlando Vitorino, aliás referido a p. 326.
Mas ainda há alguns anos, um autor português dizia que tal frase, ou tal ideia era de Santo Agostinho.
E contudo, para os juristas, esse suum cuique é romano,
quando muito é aristotélico e dizem-no porque a sua recepção foi feita pela via do Digesto principalmente.
Mais ainda: em rigor, os juristas não dizem dar a cada um o que é seu, mas atribuir, mais correcta
tradução do tribuere romano, e que aliás recobre muito mais vastas situações.
Temos assim várias questões aqui: a primeira, é a de quem é o vero autor da ideia. E quanto a isso
atrevo-me a pensar que pode ser mesmo anterior a Platão. Será? A segunda questão é se a reivindicação histórica da ideia para
o seu primeiro autor não pode prejudicar uma outra e concorrente verdade histórica, que é a paternidade do seu difusor. E
aqui não há dúvida que o pensamento que foi acção foi o aristotélico-romanista, pois só ele permitiu o Isolierung e o ius redigere in artem. Gostaria que comentasse estes
problemas.
Ainda neste capítulo que por convenção chamei temporal, mas com outras atinências. A autora é de
uma discrição muito elegante no seu estilo próprio: raramente perturba a serenidade do caudaloso rio do discurso em que se
sucedem as vozes dos nossos jusfilósofos e afins. Mas, em raras vezes que o faz, é aos poetas que vai buscar material. Uma
perplexidade fica ao leitor. É tão subtil o fio do urdir das ligações, que ficamos quase sem saber se Fernando Pessoa não
teria mesmo dialogado com Afonso Queiró (p. 99). E o caso não é único. Por exemplo, há idêntica inquietação relativamente
a José Régio, que, como se sabe, foi pretexto de um livro de Álvaro Ribeiro, curiosamente não citado.
Ainda sobre o tempo e a história, creio que teria valido a pena desenvolver e ponderar mais a ligação
da questão da natureza, e da natureza em sentido cosmológico com a historicidade, a propósito de António José Brandão (p.
152 ss.), do qual senti também a falta de desenvolvimento em torno das questões juspolíticas.
Mas o que me parece mais relevante nesta questão é uma reavaliação crítica do sentido do paradigma
superação. Usei-o aqui várias vezes, mas fico sempre preocupado, não tanto ao ler Kuhn, mas ao ler o português Desidério Murcho,
e, noutra clave, o alemão penalista-jusfilósofo Hassemer. Superar o positivismo jurídico, por exemplo, não é refutá-lo (todas
as filosofias podem ser de todos os tempos), não é anulá-lo. É, numa perspectiva não dialéctica, mas magmática, estratificadora,
sepultá-lo num olvido passageiro, até que um sismo o faça voltar, em erupção? Será que o fado das filosofias é apenas serem
esquecidas? E mesmo assim o das filosofias anti-filosóficas? Mas mesmo abstraindo do exemplo concreto. Será uma lei irrevogável,
essa da superação?
4. Terminemos por um ponto que começa por ser metodológico. Uma dissertação é uma rede de referências,
um encontro de discursos, mas pode ser também um conjunto de caixinhas que encaixam umas nas outras. Uma lenga-lenga infantil
nos ilumina a questão: Na cidade de Roma / havia um bairro / nesse bairro havia uma rua / nessa rua havia uma casa / nessa
casa havia um quarto / nesse quarto havia uma mesa / nessa mesa havia uma caixa / que estava no quarto / que estava na casa
/ que estava na rua / que estava no bairro / que estava em Roma. Muitas dissertações há que se ficam pelo equivalente desta
lenga lenga. Mas temos de perguntar, aliás como as crianças, porque queremos ser amigos da filosofia: Onde está Roma? e o que está na caixa? Ora, ao longo destas quase 400 páginas, a doutoranda explicitou
bem quais os diálogos fundamentais entre estes autores da nossa jusfilosofia contemporânea e a geral filosofia: sabemos assim
onde fica a nossa Roma. O que está na caixa não é o que diz cada um dos autores depoentes. Mas o que dizem todos. E tal é
o escopo da conclusão, aliás muito ágil.
Mas aqui afigura-se-me que, apesar de tudo, apesar sobretudo da necessária concisão das conclusões,
uma vez que o demais da dissertação foi sobretudo descritivo, haveria que ir mais longe. Ainda que fosse apenas para que como
tirar a prova real a todo o trabalho. Ou seja: talvez fosse de tentar fazer uma síntese temática e não tanto autoral partir
de Roma para a caixa, e não das caixas para Roma. Nesse sentido, e apoiando-se na grande tese que exprime na conclusão, a
p. 362, de que o pensamento português é construtivo, seria tentador construir grandes outras teses da jusfilosofia portuguesa,
com as respectivas desinências fechando um périplo que assim, pelas grandes sínteses, começa na Introdução.
É certo que os autores se não deixaram seduzir todos pelos mesmos temas, e que as volutas do nosso
pensamento jusfilosófico seriam variadas, caprichosas aqui e ali. Mesmo assim, seria interessante e útil (nesta obra que vaticino,
depois de publicada virá a ser de consulta obrigatória para todos os estudiosos e estudantes da matéria) que dispuséssemos
de uma síntese final sobre os grandes conceitos e os grandes problemas entre os vários autores:
a) a Ideia, o conceito, a noção de Direito e de Justiça e suas relações. As diversas facetas da
Justiça: ideia, valor, princípio, virtude, etc.
b) O pluralismo onto-jurídico e ético-jurídico e as suas categorias: lei natural, direito divino,
direito natural nas suas diferentes concepções. Os negadores do direito natural e afins.
c) Fins do Direito e Valores jurídicos, com suas alternativas de enunciado e de significação: justiça,
liberdade, igualdade ou desigualdade, segurança, ordem, paz
d) Relações entre o Direito e outras ordens sociais normativas: religião, moral, etc. E entre o
Direito e outras racionalidades e poderes: Estado, ordem, segurança.
e) Direito, indivíduo e pessoa
f) Direito e direitos, especificamente os subjectivos e os humanos.
Aliás sente-se no final da dissertação alguma incomodidade com a falta de fundamentação que resulta
da superação mais ou menos existencialista do grande amparo de uma natureza humana axiologizada. Se não recorrermos a esta,
como se sustentam filosoficamente os direitos humanos para mais na sua universalidade? A autora tem cabal noção do problema,
a p. 366, mas poderemos ficar por aí? Não se deveria tentar alguma saída? Matéria decerto para novos estudos.
Outro tema forte, e de grande dignidade, seria a comparação detida e explícita desses Oberbegriffen como insuperável, ideia
de direito, princípio normativo, direito
divino como reino de Deus, etc., que, estando embora em planos ou regiões diversas do ser, contudo fazem, nos pensadores
respectivos, as vezes de ponto fixo de Arquimedes, em que sua alavanca teórica pode repousar.
Num plano menos solene, mas ainda assim interessantíssimo seria por exemplo de comparar as diversas
perspectivas destes autores sobre a igualdade, como princípio jurídico, como valor, ou não
Não tendo sido estas tarefas para agora, poderão vir a sê-lo para uma outra obra (e para vários
artigos), aproveitando o abundantíssimo material para esta colhido. É só mudar a perspectiva. Nesse caso, aproveitaria para
tomar mais posição pessoal, para no fundo sabermos qual a filosofia jurídica da cultora da história da filosofia jurídica
Dr.ª Ana Paula Loureiro de Sousa.
A tanto me permito instá-la. Deve continuar o excelente trabalho que aqui nos trouxe hoje.
Já sabe, com Leibniz, que A filosofia da península hispânica pagará abundantemente as vigílias de
quem a puder estudar e compreender. E também a jusfilosofia jurídica portuguesa contemporânea. Dou as minhas por bem pagas.
GÉNESE DOS DIREITOS SOCIAIS
E IDEOLOGIAS
Arguição da tese de Doutoramento
da Senhora Licenciada D. Cristina Monereo Atienza, Ideologias jurídicas y questión
social: Los orígenes de los Derechos sociales en España, na Universidade Carlos III de Madrid, em 3 de Julho de 2006
Senhor Presidente:
(Depois de algumas palavras
prévias de saudação, em castelhano, e de improviso, a arguição, em português, baseou-se no texto seguinte:)
Antes de mais,
quero exprimir a grande honra de estar aqui, agradecendo o convite a esta prestigiada Universidade para convosco oficiar neste
ritual sagrado da ciência, e desde já peço a V. Ex.ª, Senhor Presidente do Tribunal,
ou Júri, como dizemos em Portugal, que transmita ao Magnífico Reitor da Universidade Carlos III os cumprimentos do nosso novo
Reitor (que toma hoje posse, por sinal).
Na pessoa de V.
Ex.ª, Senhor Presidente, saúdo todos os membros desta banca examinadora, e também
me permito desde já saudar o Director de tese, e a Senhora Doutoranda. Felicitando, desde já ambos por tão oportuna e conseguida
dissertação, e à Senhora Doutoranda desde já desejando as maiores felicidades nestas provas.
O tema escolhido
é não só oportuno, como socialmente útil. Num tempo em que tanto se clama pela ligação entre a Universidade, pretensamente
encerrada na sua torre de marfim, e o mundo real, a sociedade, afigura-se-nos que a discussão das raízes dos direitos sociais,
que estão no cerne da questão jurídica do Estado Social, tão martirizado nos últimos tempos, e sendo, para mais, tal discussão
empreendida sob o foco de mira das ideologias jurídicas, é um trabalho de grande interesse social, comunitário, e prático. Como diria esse grande autor e desconstrutor de paradoxos que foi Chesterton, “é preciso estudar
hidráulica quando Roma arde”. E a Roma (em tempo de Código Da Vinci perguntamo-nos
se esta Roma não e antes Amor, Roma
ao contrário) dos Direitos Sociais está a arder, sob o fogo de ideologias. Porque ideologias são as que, como falsas consciências,
e consciências falsas, se fazem passar por universalismos, no conhecimento processo de ex-denominação
de que falou Roland Barthes nessa obra desconstrutora fundante que são ainda hoje as suas Mythologies.
A primeira grande
virtualidade de uma tese é o poder justificar a sua existência por alguma utilidade: erudita, de progresso do saber, de nova
hermenêutica, de aplicabilidade prática, etc. Esta obra encontra-se plenamente justificada: é actual, é importante, e o que
diz – entrando agora no conteúdo (porque nada realmente se pode separar de nada) – é em muitos casos iluminadora.
Sendo dita de forma desempoeirada e moderna, tem traços de clássico já. Creio sinceramente que esta tese desde já se pode
transformar em obra de referência, em Espanha, sobre o assunto.
E se fora mais
abrangente na consideração da bibliografia não espanhola (o que contudo poderá quiçá ainda fazer, se a tal meter ombros, para
efeitos de uma nova investigação, mais geral), poderia bem ser uma obra de referência mais vasta,
E contudo, o recorte
nacional do tema está tão claro e preciso (desde logo no título), pelo menos tanto quanto para um português é dado entender,
que quiçá a falta de um aparato bibliográfico extra-espanhol mais amplo e de diálogos internacionais mais frequentes (há aqui
e ali nomes que gostámos de ver, como um Norberto Bobbio, um Michel Villey e um André-Jean Arnaud, além de outros, claro)
acabe por não ser procedente reparo, porquanto o preenchimento da lacuna talvez pudesse desequilibrar o conjunto. Questão
a ponderar em seu devido tempo.
Porém, a nossos olhos é estranho (os Portugueses são muito comparatistas) não haver um diálogo com nomes
como Gomes Canotilho ou Jorge Miranda, para a questão geral dos direitos. Para o caso específico do krausismo (referindo agora
um tema mais incidental) seria também interessante vir a considerar a tese, defendida em Espanha, mas editada em Portugal,
de Maria Clara Calheiros, que acaba de sair dos prelos na Imprensa Nacional.
Este relativo
isolamento doutrinal (em completude e abundância, porém, no critério escolhido) fica ilustrado pela utilização de uma edição
antiga (e até de fabrico quase arcaico – porque parece um facsímile de um
texto copiografado) do grande livro de Michel Villey La formation de la pensée juridique
moderne. É verdade que nisso somos um privilegiado, fruto das nossas errâncias francesas. É que recebemos, dedicado pela
viúva e filha do autor, já em Março 2003, a edição definitiva, com texto fixado por Stéphane Rials, publicada
pela Presses Universitaires de France, na colecção Leviathã. Este é o texto que desde então se tem citado e não o da Montchrestien,
de 1968, que se refere na nota 212 da p. 205.
Mas voltemos aos
aspectos estruturais.
O plano é claro,
completo e eficiente, no sentido que nos conduz onde nos quer levar, fornecendo-nos os argumentos com ritmo adequado.
A divisão formal
é em geral correcta, não criando nenhum ruído à leitura.
A gestão da informação,
mormente na divisão entre o corpo do texto e as notas, parece adequada. A referência a autores no corpo do texto não parece
excessiva, e as notas são em geral propositadas, e de estilo e dimensão proporcionadas. Desconta-se sempre um ou outro exagero,
que já é clássico em Direito, de notas muito longas – mas esse transbordar é até sinónimo de entusiasmo: e não se deve
cortar as asas a esse tipo de sal e sol da investigação.
Há poucas imperfeições
técnicas gráficas. Destacaria o salto de linha, dividindo uma palavra nos inícios da p. 139, e um espaço branco depois da
nota 137, na p. 187.
Esteticamente,
seja-nos permitida a discordância com o estilo de letra escolhido para alguns grandes títulos (logo a começar pelo que diz
“Parte Primeira”), que não nos parece harmonizar-se com os escolhidos nos demais casos. Coisa mínima…
Quanto a gralhas.
Para o Castelhano não falo, porque seria audácia minha. Repetem-se algumas, contudo, algumas em Latim: o nome da encíclica
Rerum novarum é ferido pelo pássaro fatal a pp. 132 e 137, mas já fica livre dele
a pp. 189, 190, 193, 220, etc; statu quo ganha um “s” a mais por exemplo
a p. 382 e 383 ou 402. Uma vírgula passa a ponto no primeiro parágrafo da p. 388, mas é caso raríssimo.
A bibliografia
é bastante rica, embora talvez não coloque suficientemente em destaque não apenas os contraditores contemporâneos dos direitos
sociais, como até os negadores dos direitos humanos tout court, até em língua castelhana.
Claro que decerto a maioria destes serão conservadores e tradicionalistas latino-americanos. Mas há, como se sabe, em solo
europeu uma mão cheia de autores que ainda não foram tocados pelo suave milagre dos direitos, e alguns que, tendo-o sido,
os interpretam ainda muito pro domo. É compreensível a ausência destes nomes, porém,
já que constituem realmente redutos ultra minoritários. Mas talvez fosse de investigar um pouco sobre esse contra-luz das
luzes dos nossos direitos. A alguns deles aludimos no nosso (contudo em certos pontos em alguma medida já por nós superado
teoricamente) segundo volume da Teoria do Direito Constitucional, sobre Direitos Humanos e Fundamentais, editado já há uma meia dúzia de anos, em Lisboa e São Paulo – e que teremos muito gosto em oferecer à Doutoranda. Apenas por brevidade para aí remetemos. Aprende-se muito com
quem tem, afinal, uma cosmovisão muito diversa da nossa, se procurarmos compreender as razões profundas dessas diversas convicções.
As teses mais
difíceis de comentar são aquelas com que mais concordamos; aquelas que, no dobrar de uma página, como que nos furtam o argumento
que íamos formulando mentalmente, ou que plasmam mesmo no papel ali escrito, diante de nós, aquilo que tínhamos em mente para
dizer. Outras vezes é a clareza, a simplicidade, lhaneza, ou carácter directo e evidente (quase expresso como verdade apodíctica)
com que algo, considerado complexo e meandroso, assim ex-plicado aparece. E aí
quiçá algum pré-juízo de maior tortuosidade académica reaja, ponderando que talvez seja “verdade ou simplismo a mais”,
parecendo que o nosso estilo teria que ser mais dubitativo, ou reticente. Mas não, há coisas que amadurecem e devem apresentar-se
então como frutos da sezão própria. E parece que esta é a altura, que esta é a época para colocar alguns pontos nos “ii”,
e esta tese vem fazê-lo, como grande estudo de conjunto que é – e não como uma simples monografia discutindo muito e
falando muito sobre quase nada, que é a mania e o estilo da hiper-especialização em que alguns, mais formalistas, pretendem
enclausurar-nos.
Esta tese coloca-nos
essa dificuldade de estar muito em sintonia com algumas das nossas preocupações, e de percorrer caminhos de investigação semelhantes
a alguns dos nossos, dizendo afinal muito que poderíamos subscrever. E certamente que iremos citar bastante este estudo em
futuros trabalhos nossos.
Recordamos, sem
querer ser exaustivo, que começamos por fazer fichas de citações que nos pareceram muito incisivas e inspiradoras. Começamos
logo na p.1, passámos ao primeiro parágrafo da p. 8, respigamos das 11 e 12, dos finais das pp. 15 e 16, finais do último
parágrafo de 18, mais matéria na p. 19, no final da 20, no meio da p. 24, em 27 e em 28, e, como o tempo de leitura e meditação
desta dissertação não era ilimitado, acabámos por não fazer mais fichas, e deixar esse trabalho para mais tarde. Mas esta
amostragem revela quanto nos pareceu sólido e esclarecido o labor que assim desagua com tanta segurança.
Esta dissertação
assume uma focalização bastante completa. Apresenta-se-nos não apenas com passos de grande complexidade e alta conceitualização
jurídica, como também momentos substanciosos de História, de Sociologia e Politologia. Aqui e ali alcança as regiões filosóficas,
e é, assim, um texto que de pleno cabe nessa Ciência global a que se vai chamando em terras alemãs juristischen Grundlagen, e que repabtizámos, há pouco, por razões institucionais, em Portugal, como “Ciências
jurídicas fundamentais”. A obra é de conjunto e de síntese, mas também de fina apreensão das várias famílias ideológicas,
cujo recorte se apresenta agora muito mais inteligível. Será depois o momento de virem os divulgadores, difundir o que aqui
se desentranhou e expôs, para que as conclusões do estudo tenham a difusão que merecem.
Há até momentos
de alguma erudição, dessa erudição que tranquiliza e reitera a boa apreciação de um estudo de alta cultura, como deve ser
uma tese de doutoramento, e que acabam por ser como que o santo-e-a-senha na passagem do neófito para um outro plano do saber,
da investigação. Saber e manifestá-lo, por exemplo, as origens da palavra “ideologia” e as suas vicissitudes de
conotação e denotação (p. 125 ss.) dir-se-ia que se pressupõe numa tese com este título. Mas não se pressupõe, hélas! É uma gentileza e uma sintonia da autora com um estilo, com uma preocupação. E tal aprecia-se e reconforta.
Não vai sem um
reparo a abrangência. Por vezes, passos de história constitucional espanhola, bastante conhecidos, a narração histórica geral
dos socialismos e afins (p. 144 ss. et passim) podem parecer supérfluas e até excessivas,
na medida em que a tese é primeiramente dada a ler a um júri. Contudo, se para o júri será recordação e redundância, de algum
modo, talvez o mesmo se não possa dizer em atenção de um público futuro, o qual, mesmo se juridicamente formado e socialmente
empenhado, cada vez em geral sabe menos desses fundamentos históricos que faziam a cultura geral e humanística, paradigma
hoje perdido. Por isso, talvez o que hoje abunde, amanhã não prejudique, antes pelo contrário.
Coisa diferente
se dirá de um ou outro excurso, de que a nota 213, da p. 206 poderá ser exemplificação. Procurando esclarecer-se algo mais
sobre Direito natural, parece seguir-se a lição de Welzel, na nota citado, mas de forma que se nos afigura nem remissiva,
nem propiciando desenvolvimento: algo naquele limbo “escolar”, que nos deixa alguma incomodidade. Perante a complexidade
da temática, a nosso ver, o mais prático teria sido fazer apenas uma seca remissão, sem mais explanações. Elas requereriam
uma daquelas notas épicas a espraiar-se por muitas páginas – e mesmo assim duvidamos da sua utilidade na economia do
estudo.
Centrando as nossas
interrogações em apenas alguns temas maiores, cremos que, apesar de tudo, no plano conceitual um dos maiores de todos é mesmo
o dos valores. Os valores são convocados a vários títulos ao longo da tese, aliás,
logo a partir das suas primeiras páginas.
Espanha encontra-se
num lugar constitucionalmente privilegiado para fazer uma teoria crítica dos valores políticos, já que a sua Constituição
expressamente começa por explicitar os valores superiores. A doutoranda, com argúcia, não deixa de advertir as contradições
axiológicas do Projecto de Tratado que instituiria uma Constituição para a Europa. Quereria avançar algum começo de teorização
que relacionasse valores políticos, ou valores constitucionais com os direitos sociais? Seria uma ligação da maior importância.
Às vezes revelam-se
contradições, paradoxos, torna-viagem de conceitos. Por exemplo: a subsidiariedade, grande princípio do novo constitucionalismo
europeu (com contornos federalistas, sobretudo, e aproveitamentos neo-liberais, sem dúvida) nasceu, ou pelo menos notabilizou-se
no seio do pensamento católico social, que é um dos vários escalpelizados nesta tese. A p. 392 se sintetiza um aproveitamento
do conceito no sentido de aligeiramento de responsabilidades estaduais, e se regista a sua utilização como argumento contra
os próprios direitos sociais.
Mas, em tese,
e independentemente das recuperações e das géneses, será que o princípio pode ter uma interpretação “amiga” dos
direitos sociais, enquanto forma justa de prevenção do assistencialismo e da mentalidade subsídio-dependente, capazes, só
por si, de arruinar as finanças das seguranças sociais estaduais e de, no limite, envilecer os mais carenciados, e acabar
– para glosar um título de Álvaro Cunhal (figura já mítica que foi secretário-geral do Partido Comunista Português)
–, com uma das dimensões da “superioridade moral dos comunistas”, ou, ao menos, dos “proletários”?
Outra questão. Presumimos que depois de anos de síndroma de tese (que a todos nós normalmente nos toma) gostaríamos
de afastar um pouco as preocupações da doutoranda do argumento central do seu estudo (sobre que irá responder solicitada por
outras arguições, bem mais competentes e sabedoras que a nossa), para a convocar ou provocar num outro plano.
Começa a ser de algum modo um estilo de teses a impor-se, aquele que, depois do levantamento clássico do tema, normalmente
histórico e comparatístico, etc., e depois de densificadas as perspectivas próprias, a “tese” proprio sensu, como estamos na área de Direito, e Direito é pratico serviço de vida, luta constante pela Justiça,
com estas ou outras justificações acabamos por ser brindados com um remate prospectivo, de iure constituendo. Já há teses com propostas legislativas, ou de reforma legislativa finais.
Ora, sendo o conhecimento histórico, sociológico, politológico e filosófico, e propriamente o operador ou paradigma
hermenêutico-praxiológico ideologia profundamente esclarecedores e capazes de rasgar
horizontes, e tudo isso foi aqui convocado, julgamos não ser descabido perguntar se a doutoranda, pousada a pena, ou fechado
o computador, e havendo suspirado fundo com o final da sua obra, não terá acaso perguntado algo como isto:
Haverá alguma
reforma constitucional (ou revolução…), ou legislativa capaz de tornar os direitos sociais por um lado mais efectivos,
mais reais, mais eficazes, e mais adequados aos reptos do presente e do futuro próximo? Seria possível resumir essa possibilidade
legislativa, acaso possível? Há ideias gerais nas últimas páginas da tese, mas não são ainda propostas normativas propriamente
ditas.
E, quer a resposta
a esta questão seja positiva, quer negativa, outra dúvida nos assalta. Uma vez que a Universidade deixou há muito de hipocritamente
tentar parecer redoma imune a certas questões, poderíamos também formular esta outra:
Haveria alguma
acção prática, acção cívica, de cidadania, e até de política tout court, capaz
de, em concreto, fomentar o mesmo objectivo ou desiderato de maior realidade e practicidade
dos direitos sociais, sempre caluniados aqui e ali como irreais, utópicos, não jurídicos, etc., etc., e como fazendo parte
do velho baú de antiguidades do pretensamente caduco Estado social?
Este tipo de reflexão
aplicada (e descompressora do stress da tese) teria também a virtualidade de arrepiar
caminho a essa “relativa estraneidade em relação aos processos político-sociais paradigmaticamente transformadores que
se verificaram e vêm verificando (…)” que Gomes Canotilho detectava, no final da década de 90 do século XX, nos
próprios direitos fundamentais em geral.
Uma última angústia
tem a ver com o final (provisório, é claro) desta evolução. Em que ponto estamos? Será que tem razão Eduardo Lourenço quando
do socialismo actual (em princípio o factor dinâmico que das reivindicações sociais ideológicas ainda restaria mais impoluto
– depois do estrídulo em ondas das quedas dos muros e das ilusões) traçou este retrato, que passo a citar, e que consequências
para os direitos sociais daí poderiam advir:
Lourenço escreveu
este texto quase catártico em 2002, e republicou-o em 2003. Que terá mudado desde então, na via das terceiras vias, e pós-terceiras
vias, herdeiras dos ninhos de alguns direitos sociais, históricos já?
Começámos por sublinhar a honra de estar aqui, e devemos concluir, simetricamente, com o prazer que tivemos no caminho
para aqui chegar. A leitura desta tese foi muito proveitosa. Só assim haverá progresso nas epistemai, nos saberes: enquanto aos professores examinadores e avaliadores for dado aprender e pensar com os
que examinam e avaliam. Muito obrigado pela vossa atenção.
LOURENÇO, Eduardo — “Esquerda na Encruzilhada
ou Fora da História?”, Finisterra. Revista de Reflexão e Crítica,
Outono 2002, n.º 44, pp. 7-11 (citação na p. 10), in ex “Público”, 18 Fevereiro 2003, p. 12.
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