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HETEROXIAS, de Paulo Ferreira da Cunha

Arquivo Histórico sobre Constituição Europeia I

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 Alguns pontos nos "ii" se queremos falar em Constituição...

Capítulo I. Da Constituição

 

Noção de Constituição

 

1.      Uma Constituição é a mais alta expressão do Direito e da Política numa sociedade, seja de que tipo for. Estatuto jurídico do político, como se lhe tem chamado sinteticamente (e conceito com muita fortuna doutrinal), é a síntese das relações de poder, a máxima regra de produção do Direito, a forma da sociedade, e, classicamente era vista como as muralhas que defendem a Pólis.

 

 

As duas formas de Constituição

 

2.      Há dois tipos de Constituição: a natural, histórica, aberta, evolutiva, não codificada, mas que pode ser compilada, como foram as Ordenações, e como é a Constituição do Reino Unido ainda hoje (a do constitucionalismo natural), e a artificial, voluntarista, utópica, codificada (a do constitucionalismo moderno), como a maioria das Constituições modernas, sempre sujeitas a revisões aquando de cada mudança política, e à pura e simples revogação e substituição ao virar da esquina de cada revolução.

 

 

Efeitos políticos das Constituições

 

3.      Pode mesmo dizer-se que as constituições naturais geram sereno fluir da tradição democrática (como no Reino Unido) e as constituições voluntaristas são potenciadoras de instabilidade política (o caso mais gritante é o da América Latina, com mais de duzentas constituições escritas, e sempre a crescer em número, sem que se consiga jamais resolver os problemas reais, evidentemente).

 

A Constituição e o Estado

 

4.      Há quem vincule exclusivamente o conceito de Constituição ao de Estado. Para quem siga essa concepção, fácil é concluir que uma Europa com uma Constituição passa a ser um Estado. Ou então, complicando as distinções, dir-se-á que a Constituição Europeia não é uma verdadeira Constituição... Na verdade não o é, mas certamente não pelo conteúdo, mas pelo procedimento da sua elaboração, como veremos. E não pelo facto de a União Europeia não ser um estado. Sendo hoje a equivalência Estado / Constituição a realidade normal, mais corrente, a verdade é que uma concepção abrangente (e a mais realista) de Constituição que implique o chamado conceito histórico-universal de constituição (e englobe, por isso, o dualismo constituição natural e constituição codificada) implica uma visão pluralista, em que se reconhece a existência de uma lei fundamental, ou de um conjunto de leis fundamentais, em todas e quaisquer comunidades políticas. Ora a União Europeia é uma comunidade política e, por isso, tem uma Constituição. Já a tem.

 

 

Pluralidade Constitucional

 

5.      E não há problema na multiplicidade de Constituições, mesmo incidindo, em concreto, sobre a mesma população e o mesmo território. Um cidadão do Quebeque relaciona-se com vários estratos constitucionais: desde a sua terra francófona e católica ao Canadá, chegando à Rainha de Londres. Portugal pode perfeitamente conviver com a Constituição Europeia mantendo a sua. O problema real é outro. É o de saber qual é a Constituição que é soberana, qual é que decide em última instância, ou se há repartição de competências. E como.

 

Princípio da Subsidiariedade

 

6.      O Projecto de Constituição da Convenção reparte competências de forma demasiadamente taxativa (a partir da sua decisão, e não, como seria esperável, residualmente), deixando aos Estados nacionais muito pouco. Tal contraria o (todavia teoricamente proclamado) princípio da subsidiariedade, pelo qual as estruturas institucionais e poderes mais próximos das realidades são quem deve ter a competência para curar dos respectivos problemas, sendo as estruturas e poderes mais longínquos (como os da União) apenas subsidiários. Veja-se a este propósito o n.º 2 do art. 5.º e esse conceito totalitário da cooperação leal dos Estados com o Super-Estado Europeu. Nesse sentido, por exemplo, não repugna a maior integração ao nível da defesa comum (sem descurar a defesa própria), porque da defesa comum melhor trata a União. Nesse sentido, não faz qualquer sentido a uniformização jurídica, porque do Direito de cada Estado sabe cada Estado, porque mais próximo da(s) respectiva(s) Nação (Nações). Porque o Direito não é uma matemática universal, transcultural. Mas multicultural. E num tempo de folclórica defesa do multiculturalismo querer abdicar das diferenças jurídicas é não só incoerente como preocupante.

 

 

Hierarquia das Normas

 

7.      Apesar de a doutrina poder fazer interpretações mais ou menos restritivas, e sem dúvida poderem correr rios de tinta e de polémica sobre essa questão, a verdade é que uma interpretação declarativa do texto que possuímos leva a que todo o direito da União (e não só sequer o do texto constitucional europeu), mesmo o mais obscuro, se sobreponha a todo o direito de cada Estado membro (mesmo o mais digno a começar pela respectiva Constituição). Essa é a realidade. E essa hierarquia das normas subverte completamente a ideia de pluralidade constitucional articulada essa sim, perfeitamente admissível. Não nos esqueçamos de articular o art. 10.º do projecto de tratado constitucional com os artigos 12 e 13, das competências. Na verdade, as competências são sobretudo da União, sendo as dos Estados supletivas. Mesmo que (o que não é comportado pela interpretação do texto) o primado do direito europeu sobre o nacional excluísse os aspectos não europeus, a verdade é que tudo, virtualmente tudo, passa a ser europeu, de acordo com a enumeração das competências. A questão é circular: ou os estados têm alguma autonomia, e lhes resta algum poder próprio real, ou então são regiões, autarquias, e por isso faz sentido que os ditames do poder central (Bruxelas) se imponham a qualquer localismo... ainda que constitucional.

 

 

Como harmonizar as Constituições

 

8. Totalmente ao invés do que se prevê, a plena introdução do princípio da subsidiariedade obrigaria a que a Constituição Europeia fosse residual, não programática, não directiva, e até tudo aconselharia a que, como até aqui, fosse sendo fruto de tratados e sentenças e práticas (corrigindo-se a deriva anti-democrática), natural, gradualmente. Mas se um dia fosse oportuno pensar um texto codificado, então sempre se teria de acautelar que nunca uma Constituição Europeia poderia, directa ou indirectamente, tornar inconstitucional qualquer parte da Constituição de cada Estado.


 

Capítulo II. Constituição e outras figuras Jurídico-Políticas

 

 

Constituição e Tratado

 

9.      As Constituições só derivam da vontade popular lenta, gradual, histórica, no primeiro caso, ou, no segundo caso, por um acto de voluntarismo, através de uma assembleia constituinte, com ou sem referendo legitimador. Não há mais tipos de Constituição. Os tratados não criam constituições. Pode haver tratados que invadam matérias constitucionais. Mas são, precisamente, não tratados constitucionais, mas tratados inconstitucionais.

 

 

Requisitos da Constituição Moderna

 

10.  Só há uma Constituição (no referido sentido moderno) quando há, nesse sentido, a manifestação democrática directa, livre, secreta, universal da vontade do Povo ou Povos envolvido(s). O Preâmbulo do texto proposto e muito significativo. Trata-se da reconstituição feita por Tucídides do Discurso fúnebre de Péricles aos atenienses: a democracia a que se amarram os europeus é apenas uma democracia de maioria, quando é certo que a democracia moderna é respeito também pelas maiorias; e depois vem o ridículo de os convencionais deixarem inscrito nesse portal de mármore, em letras de oiro, o agradecimento a si mesmos: grandes legisladores que nos outorgam uma constituição a quem deveríamos estar gratos. Cobrem-se de ridículo

 

 

Constitucionalismo e Poder Constituinte

 

11.  Quer uma Constituição natural quer uma Constituição voluntarista são fruto do Poder Constituinte. No caso de uma Constituição natural, o poder constituinte originário, do povo, vai historicamente modelando as Leis Fundamentais, os Costumes fundamentais, as Praxes fundamentais, sem necessidade de representação. Ou seja: sem necessidade do exercício do poder constituinte derivado. Já no caso de uma Constituição codificada é vital a representação popular expressa para tal tem de haver deputados eleitos para isso.

 

 

Constituição e Carta Constitucional

 

12.  Uma Constituição é manifestação do poder constituinte originário, poder que manifesta a real soberania popular, e que se exprime pelo voto e, mais mediatamente, pela representação por constituintes. Quando o soberano (e soberano é o que decide do estado de excepção, como afirmava Carl Schmitt), quando o Príncipe em qualquer das suas formas, manifesta a sua magnanimidade dando aos seus súbditos um estatuto jurídico do político, sem os ouvir, ou ouvindo-os, mas sendo ele a decidir, e não os povos, nesse caso estamos perante uma Carta Constitucional. D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal outorgou aos Portugueses, do outro lado do Atlântico uma Carta Constitucional, que não foi votada, mas aceite como mal menor. Mas essa ferida anti-democrática no nosso Liberalismo teve consequências nefastas, e marcou um sentido simbólico. Hoje corremos o risco de ter também uma Carta Constitucional europeia, outorgada pelos governos dos Estados, sem consulta popular, ou com um plebiscito a posteriori.

 

 

 


 

Capítulo III. Poder Constituinte e Processo Constituinte

 

Poder Constituinte Originário e Representação

 

13.  Esse poder constituinte originário, que reside sempre, sem possibilidade de confisco ou alienação, nos Povos, em cada Povo, é imprescindível. O poder de representantes (deputados) é apenas derivado. E não existe sem o primeiro.

 

 

Ilegitimidade de uma aprovação intergovernamental

 

14.  Por isso, uma Conferência intergovernamental (constituída por governos que nem sequer são eleitos directamente pelos respectivos Povos) não pode aprovar uma Constituição. Mesmo que a referende depois. E até mesmo se a referendasse antes... Embora neste caso houvesse algo mais de legitimidade.

 

 

Ser ou não ser tratado

 

15. Para ficar bem claro: Uma Constituição não é um tratado, e um tratado não pode aprovar uma Constituição. Um tratado é coisa de diplomatas, uma Constituição é coisa do Povo e dos seus deputados. O texto que saiu da Convenção não é um tratado, é uma utopia Constitucional, que bem pode passar a realidade as utopias são realizáveis. Poderá vir a ser ilegitimamente aprovado por tratado, mas isso não faz do texto um tratado. A forma de aprovação inusitadíssima é que seria a de tratado.


 

Capítulo IV. A Constituição e o Referendo

 

 

Pelo Direito e pela Política contra a tecnocracia

 

16.  O argumento de alguns tecnicistas segundo o qual não se pode tratar o novum das coisas europeias com os instrumentos do passado, representa sobretudo uma epistemomaquia do Direito Comunitário contra o Direito Constitucional. Na verdade, ninguém gosta que a sua área seja subalternizada, e muitas vezes é difícil de reconhecer pelas áreas novas que devem muito às áreas clássicas e já devidamente testadas. E que não podem passar sem os seus conceitos ancestrais. Todavia, o Direito Comunitário é um nado-morto. O que há agora e vai haver no futuro, esperamos, é Direito Europeu. E é claro que este Direito Europeu não pode prescindir da Ciência Jurídica em geral e do seu património comum. Ora as categorias do Constitucionalismo, quer do natural quer do codificado, não podem lançar-se pela janela fora sob pena de quem o fizesse se viesse a colocar numa zona de não-Direito, no plano científico. E, no plano político, não vemos como a democracia e a liberdade, pela qual matamos e morremos ao nível do Estado (quer dizer, mataram e morreram os nossos maiores com quem nos identificamos) possa agora ser desdenhada lá porque subimos num grau para uma integração europeia. Que as decisões da organização da comunidade política (que não se vê por que razão se não devam chamar constitucionais) têm de derivar da vontade do povo parece-nos um princípio universalmente válido. A que título, e com especiosismos da langue de bois tecnocrática, nos querem convencer de que já não é assim? E pode-se pregar a liberdade para o interior dos países e a burocracia mais sufocante para o melhor funcionamento de uma Europa alargada? Há profundas contradições no discurso científico que pretende que as soluções para a Europa são técnicas. Pelo contrário, afirmamos que as questões para a Europa são políticas. E que, antes de mais, não terminou nem o legado das Revoluções ocidentais (americana e francesa) nem o ideal de uma sociedade aberta. E que antes de tudo isso, para nós, portugueses, estava ainda esse grande ideal da Liberdade ainda pré-liberal que teve nomes grandes ao longo dos séculos. Esse património jamais cederá perante o oportunismo, a tibieza, o seguidismo e a visão míope. Por alguma razão os pós-modernos e os colectivistas de ontem são favoráveis a uma Europa burocrática e decidida pelos soberanos sem os Povos: é a única maneira de fazerem triunfar nos areópagos internacionais (ainda são internacionais) o que em cada país não conseguem fazer vingar, porque aí os impede a barreira dos votos.

 

 

Democracia directa e Democracia representativa

 

17.  A democracia representativa é um menos e não um mais face à democracia pura, directa, participativa. Invocar-se a democracia representativa contra a primeira com demagogias anti-esquerdistas ou anti-populistas é absurdo. É óbvio que nenhum povo elege delegados se pode directamente dizer o que quer. Um referendo valerá sempre mais que uma assembleia de deputados. Há quem o negue, mas assim também nega a democracia no seu mais puro ideal: poder do povo, pelo povo e para o povo. Em democracia não há tutores do povo.

 

 

O grande instrumento

da democracia directa moderna : o referendo

 

18.  A democracia directa nada tem a ver com a democracia popular ou o chamado poder popular. Está muito longe de se confundir com assembleias tumultuárias, plenários selvagens, etc. A democracia directa, hoje, significa dar a voz directamente ao Povo em matéria deliberativa, e não apenas para eleição de representantes. Se, no passado, as massas foram instrumentalizadas por plebiscitos de ditadores, hoje o cidadão responsável vota e vota normalmente muito bem em referendos, nos quais os diferentes defensores das diversas opções fazem campanha livre e informativa. Não há nenhuma incompatibilidade entre a democracia directa e a democracia representativa. Pelo contrário, completam-se. Nem sempre se deve consultar directamente o Povo. Mas sempre se deve consultá-lo directamente em matérias graves, vitais. Como é o caso de uma Constituição. Para mais feita sem que tivesse eleito deputados para tal.

 

 

Constitucionalidade do Referendo

 

19.  Em alguns casos diz-se que o referendo é inconstitucional. Todavia, muitos dos que o dizem admitem uma revisão constitucional das respectivas constituições nacionais a posteriori: o que seria apenas o preito que o vício presta à virtude. A grande doutrina, como a de um Otto Bachoff, sabe bem que pode haver normas constitucionais inconstitucionais. Pelo que, mesmo que se entenda que um texto constitucional nacional não permite referendo, sempre o referendo será constitucional, e, nesse caso, a norma proibitiva ou omissiva claramente materialmente inconstitucional. A solução não é pacífica na doutrina, porque na doutrina há muito positivismo, demasiada reverência pela sacralidade dos textos, e pouca pela vontade dos Povos. Mas a doutrina, se for honesta, independentemente da sua orientação, saberá ao menos reconhecer que a solução não é absurda, antes tem profundas tradições: é a solução do realismo jurídico, e, a nosso ver, a solução democrática.

 

 

Múltiplos defensores do Referendo

 

20. Na luta pelo referendo estão grupos, movimentos e partidos dos mais diversos sectores do espectro político. 95 membros da Convenção assinaram a proposta de referendo, entre os quais os portugueses António Nazaré Pereira, A. Costa e Luís Queiró. Entre os apoiantes do referendo contam-se entidades tão diferentes como o Daily Mail britânico, o Partido Liberal Alemão, o primeiro ministro do Sarre e o seu CDU - democrata cristão, a Juventude do Partido Socialista Popular e grupos do Partido Social Liberal da Dinamarca, o Forum Cristão Social da Hungria, e o Movimento Federalista e a Juventude Federalista em Itália. Só o Democracy International agrupa mais de 250 organizações não governamentais pró-referendo em mais de 25 países... O referendo só dá legitimidade a um processo constitucional. E embora não seja suficiente, é um princípio, no qual podem e devem coincidir democratas de muitos quadrantes e com diferentes modelos para a Europa.


 

 Capítulo V. Constituição Europeia: Os falsos problemas

 

 

Complexidade do Projecto de Constituição.

Demagogia da tese da vulgarização

 

21.  O projecto de constituição europeia é um tijolo longo (mais longo que os tratados em vigor) e complexíssimo. A tese de que serve para pôr ordem nos tratados e para que os cidadãos conheçam o seu direito é puramente demagógica. Façam o teste: quantos leram, e quantos serão capazes de ler e interpretar o projecto que aí está? Mesmo o honnête homme, culto, não tem paciência nem preparação técnica. Poderá concordar com as banalidades ideológicas (algumas perigosas, se bem lidas: politicamente correctas) do princípio do texto: mas elas estão precisamente lá para que não leia mais, e fique de consciência tranquila. Em qualquer caso, sempre serão necessários os juristas e as interpretações doutrinais. O próprio texto do projecto é explícito no continuar a considerar a jurisprudência da União como fonte interpretativa. Faz muito bem em admiti-lo: mas não reduz a complexidade...

 

 

Questões de fundo e cortinas de fumo no debate

 

22.  As questões da presença ou não do cristianismo no Preâmbulo da Constituição e as reformas institucionais, sendo importantes, são usadas, em grande medida, como manobras de diversão do que é essencial, liminar: a legitimidade de quem fez este texto e de quem o vai aprovar.

 

 

Uma Constituição jacobina não precisa de Cristianismo

 

23.  É absurdo dizer-se que a presença do Cristianismo no Preâmbulo melhoraria a Constituição. O Cristianismo não está lá, no texto todo. Trata-se de uma constituição jacobina. Colocar abruptamente, a martelo, o cristianismo no Preâmbulo seria uma hipocrisia (do grego hypokrités, actor, que usa máscara).

 

 

Cristianismo constitucional não é religião

 

24.  Afirmar-se, por outro lado, que a presença do Cristianismo no preâmbulo é uma referência religiosa e que geraria uma guerra ou querela entre os credos, provocando ciúmes entre os não contemplados (e escândalo dos ateus e agnósticos), é pura ignorância histórico-cultural. Qual o papel do budismo, do xintoísmo, do xamanismo, do New Age, na construção da Civilização Europeia? Não se trata do cristianismo religioso, mas da cultura cristã, que é muito mais que religião. Falta de cultura dá disto...

 

 

Cristianismo e Iluminismo

numa eventual Constituição consensual futura

 

25. Se um dia se fizer uma Constituição codificada (e tem de admitir-se essa hipótese), uma Constituição que terá de ser consensual e mínima, o Cristianismo não só fará falta no Preâmbulo, mas (mais do que isso) algo do não sectário mas católico (universal) espírito cristão, e não do jacobino, terá de inspirar o todo constitucional... E isto será naturalmente aceite por qualquer agnóstico, ateu, ou crente de outra fé, se Homem ou Mulher de boa vontade e com sentido histórico. Mais consensual também se deverá tornar o reconhecimento do legado das Luzes, como grande revolução emancipatória e humanista.

 

 

 


 

Capítulo VI. Os verdadeiros problemas da Constituição Europeia

 

Medidas institucionais confiscadoras

do peso de Portugal na Europa

 

26. Evidentemente que a existência de  um forte presidente europeu, a perda do comissário para países como Portugal, etc. são a consagração de que não valeremos nada na Europa. E que assinar uma Constituição destas seria assinar uma certidão de óbito nacional. Claro que pode haver quem o defenda: uma dissolução completa do país. Mas que o diga. Porém, falta essa coragem...

 

 

Codificação europeia

subsequente à Constituição:

perda de legados pioneiros

 

27.  A Constituição dará azo a que se façam grandes códigos europeus (civil, penal, etc.) - algo já se prepara nesse sentido - acabando com a liberdade de fazermos as nossas principais leis. Nós, que fomos pioneiros nas liberdades (desde antes da formação da nacionalidade, no séc. VII), na abolição da escravatura, pena de morte, no humanitarismo penal, etc., veremos imporem-nos uma uniformização legal como nem sequer existe nos EUA.

 

Mega-estado Europeu e

Preponderância dos Grandes

 

28.  Conclusão: não é sequer uma constituição de uma federação que se está a fazer - visa-se aqui, ao que tudo indica, um mega-Estado Europeu, em que alguns super-estados se sobreporão aos pequenos  estados mais carenciados materialmente.

 

 

Geometria institucional variável

e eurocapitulacionismo

 

29.  Pode discutir-se muito sobre as soluções concretas: mais comissão, menos comissão, mais presidente menos presidente, mais veto menos veto, mais comissários menos comissários. O que se vai observando com real relevo é que os pontos de honra vão caindo, e a troco de nada se vai embarcando sempre na corrente dominante. E se dá de barato toda a autonomia (já se não fala sequer em soberania nacional ou do Estado Português) em nome da unidade e da permanência. É a propósito importante salientar o ridículo de uma cláusula de desvinculação: como se os Estados não pudessem sair sem ela... Mas é essa a lógica da Constituição: tudo prever... Mesmo o óbvio. É evidente que devemos permanecer e aprofundar a nossa presença na União. Mas precisamente com um euro-activismo, com uma atitude euro-construtiva, e não com um apagado e conformista eurocapitulacionismo.

 

A Solução linguística final

 

30. Já há quem proponha, neste quadro (mas deve dizer-se que tal não está no texto do projecto de Constituição), um governo europeu único e a solução do problema linguístico, certamente a solução final, com todos a falar uma única língua, e reduzindo toda a riquíssima variedade europeia à cosmovisão dessa língua. Porque, como dizia Heidegger, a língua é a casa do pensamento. Acresce que se essa língua for, como tudo indica, o inglês, pensaremos certamente mais pela cabeça americana do que pela inglesa. Há quem goste muito. Mas ainda somos Portugueses e Europeus...


 

Capítulo VII. A Constituição Europeia, um Repto à Cidadania dos Europeus

 

Que fazer?

Informar do que realmente significa

esta Constituição Europeia

 

31. Que fazer? Informar as pessoas. Os nossos concidadãos, mesmo os cultos, estão totalmente a Leste (na verdade, a Oeste) deste problema... Basta ler-lhes o preâmbulo de auto-agradecimento dos convencionais digno dos povos submetidos ao despotismo esclarecido - , o princípio da cooperação leal camisa de forças dos Estados -  e o do primado do direito da União  sobre os direitos nacionais - fim do que restava da autonomia jurídica - para ficarem esclarecidos...

 

Que propor?

 

32.  Que propor? Sem renegar os princípios, nem um milímetro, temos também de ser pragmáticos. Perante a distorção do processo talvez não se possa já defender totalmente que se volte à estaca zero. Até porque essa reivindicação contaria com o peso de uma forte oposição (e até desdém) institucional, e estaria votada ao fracasso. Uma hipótese, a ponderar, é antecipar o referendo. Declarar que o governo português não poderá falar por Portugal sem ser mandatado por um referendo. E se nesse referendo ganhar o "sim" ao presente texto, se deverá adoptá-lo como base de trabalho para ser discutido no Parlamento Europeu que sair das próximas eleições europeias. O ideal seria que a aprovação fosse feita por uma Câmara Constitucional (que poderia sair desse parlamento), mas com representação absolutamente paritária entre os Estados.

 

 

 

 

Que Referendo e com que consequências?

 

33.  A questão é se devemos passar de uma Constituição como a actual - natural, evolutiva, aberta - para uma outra: codificada, rígida, fechada. Juridicamente, é evidentemente possível (embora seja certamente prematuro mas essa é uma questão política) uma Constituição deste tipo para a Europa, mas jamais por este método: porque lhe falta o elemento democrático na elaboração, que só a custo seria vencido pelos referendos. O problema não é contudo insolúvel: desde que os deputados a eleger em 2004 para o Parlamento Europeu assumissem poderes constituintes. As perguntas certas nos referendos sanariam a falta de legitimidade política. É que há várias coisas a perguntar: não se trata de ser a favor ou contra a Europa, como demagogicamente já se está a fazer crer. É preciso saber se cada Povo de cada Estado: 1) Concorda que a Europa tenha uma Constituição codificada, ou se prefere uma Constituição aberta, como até aqui; 2) Se, no caso de a maioria optar pela Constituição codificada, se deseja constitucionalizar o projecto, ou se, mais democraticamente, se reconhecem poderes ao Parlamento Europeu para fazer uma Constituição: talvez uma Constituição mínima e legível, como a dos EUA. Tal desagrada tanto aos bons alunos como aos eurofóbicos. Por isso, os referendos perguntarão certamente se queremos esta Constituição Europeia.  O que infelizmente reconduzirá à falacciosa questão de ser contra ou a favor da Europa.

 

Os deputados ao PE em 2004

 serão constituintes?

 

34.  Dir-no-ão que a solução convalidadora que sugerimos é burocrática, complicada? É o problema de endireitar o que nasceu torto... É quimérica? Em política não há quimeras, e até as utopias podem realizar-se, para o bem e para o mal. Luís XVI convocou os Estados Gerais para lançar impostos e eles assumiram-se como deputados da Nação, e na Casa de jogo da Péla juraram não se separar até votarem uma Constituição. É o quadro de David que tenho diante dos olhos... Os deputados do Ancien Régime que passam a deputados constitucionais, porque encarnam a vontade do Povo. Oxalá os nossos deputados no próximo Parlamento Europeu, a quem vão impor uma Constituição, compreendam que, objectivamente, serão eles quem terá a legitimidade para fazer uma: se acharem que deve fazer-se. Porque há razões, que veremos de seguida, que permitem ponderar a possibilidade de não fazer por agora nada mais.

Há, contudo, um problema: se a Constituição europeia for metida no congelador, lançando os governos nisso interessados a cortina de fumo do fracasso da cimeira de Bruxelas de Dezembro de 2003, então os deputados europeus de 2004 dificilmente serão eleitos de forma limpa: o debate das europeias será falseado, e, consequentemente, não poderão ter poderes constituintes deputados eleitos por um eleitorado na sua maioria esmagadora narcotizado, que jamais pensará que irão tirar a constituição do congelador


 

 

Capítulo VIII. Constitucionalismo Europeu: Balanço e Prospectiva

 

Já temos uma Constituição Natural

 

35.  Já temos uma Constituição Europeia. Feita de arte e tempo. Uma constituição natural, histórica. Feita de tratados e sentenças e doutrina, absolutamente compilável num volume. E se houver alguma limpeza nas fontes, que a pode haver, o livro ficará mais manejável. Constituição complexa? Na verdade, não mais que uma Constituição rígida, voluntarista, fechada, codificada. Não nos esqueçamos que uma Constituição codificada como a que nos querem fazer não é apenas o seu texto: é também as decisões sobre ele, a sua prática (e que prática nos espera!) e os comentários da doutrina. As páginas a ler multiplicar-se-ão, para raiva (e quiçá arrependimento) dos senhores juristas e burocratas preguiçosos...

 

 

O exemplo dos EUA:

Uma Constituição mínima

 

36.  Assim, se optarmos por uma Constituição codificada, ao menos que seja um texto mínimo. E aí olhemos o exemplo dos EUA Um texto curto e duradouro... Mas os burocratas querem regular tudo... Como vão aceitar as lições da Constituição codificada mais antiga do mundo em vigor?

 

 

A Constituição Europeia

determinará tudo o mais

 

37.  A luta pela Constituição Europeia torna qualquer esforço pela reforma do sistema político português e qualquer eventual iniciativa sobre a Constituição portuguesa muito menos actuais e prementes. Só depois de se ver em que ficou esta luta será oportuno pensar na Constituição nacional. Por uma razão simples: é que se houver esta Constituição europeia, ela será um estatuto de uma autarquia, no máximo de uma região autónoma... Se outro modelo se encontrar, estaremos a falar da Constituição do País. São terrenos de debate muito diversos.

 

 

As reais dicotomias quanto à Europa

 

38.  A questão não está entre ser europeísta ou eurocéptico ou anti-europeu. A questão está entre aceitarmos o aprofundamento da deriva anti-democrática da construção europeia no sentido de uma Europa-Estado, e da hegemonia dos grandes, ou, pelo contrário, com sentido construtivo, propormos soluções para uma Europa que continue a ser das Europa das Nações, mas unida e forte, capaz de encontrar com imaginação e saber respostas aos desafios, sem esquecer os princípios essenciais, desde logo o do poder constituinte originário e o da subsidiariedade, hoje subalternizados e esquecidos.

 

A questão já não é sequer o Federalismo

 

39.  Nunca foi muito claro o que se entendia por federalismo na Europa. As posições contra o federalismo dos últimos tratados foram compreensíveis e até salutares, e significaram sobretudo um alerta contra excessiva e demasiado rápida integração. Não podem significar uma profissão de fé teórica. Porque federalismos há muitos, e opostos. E, por vezes, a solução mais consentânea com a autonomia nacional pode perfeitamente compatibilizar-se com soluções federalistas. A definição de federalismo mais feliz é a mais abrangente: sistema ou forma de união de agrupamentos, tendo em vista a realização de objectivos comuns, respeitadas, porém, as autonomias das partes integrantes (Galvão de Sousa, Clóvis Lema, José Fraga). Perante esta definição, quem nega que o euro é uma manifestação de que já existe uma federação? Pois basta haver um ponto de federalismo para haver federação. Mas no dia em que tudo for federado, tudo deixará de o ser... E aí passar-se-á, na melhor das hipóteses, a um Estado federal, e não a uma federação de Estados. São coisas muito diferentes. E se uma federação de Estados (dependendo da arte para os unir e separar e separar para melhor unir) é aceitável, já um Estado único europeu seria uma monstruosidade. A velha monarquia federativa das nações espanholas continua para alguns (Galvão de Sousa et al.) a ser um bom exemplo de federalismo: cada entidade manteve as suas instituições e leis próprias, numa situação de autonomia (o conceito foi há pouco magnificamente desenvolvido por Paolo Grossi), com cortes separadas e até fueros privativos. Um sinal de que se já não estará numa federação mas a caminho de um Estado é o desejar-se ignorar a tradição institucional e jurídica de cada nação, menosprezando os seus representantes reais (os seus parlamentares nacionais), e as suas leis, desde logo as mais importantes: Constituição e Códigos, desejando fazer uma Constituição voluntarista geral, e Códigos únicos para todas as entidades envolvidas.

 

Desígnio Europeu

 

40.  É tempo de afirmar um europeísmo democrático contra a euroburocracia. De lutar pelo europluralismo contra o euroestatismo. Pelo sempre actual sonho da Europa Unida das Nações, recusando o pesadelo da Eurolândia, o Estado leviatão europeu.      

 

(primeira versão in Videtur, n.º 23)

 

Nota Actualizadora: Desde que se redigiu este texto, muita água passou sob as pontes. O resultado das eleições para o Parlamento Europeu em praticamente todos os Países, e muito significativamente no nosso, e a decisão dos Governos de aprovarem um "Tratado Constitucional", devem fazer-nos reflectir. Esperamos poder repensar este tema à luz dos novos acontecimentos, que efectivamente fazem História. Um artigo nosso publicado na "Grande Reportagem" e o artigo "Tempos de Sancho" (parcialmente publicado no "Diário de Notícias"), que neste site publicamos, serão, necessariamente, peças essenciais para os dados dessa revisitação. Porque os valores e os princípios se mantêm, mas quando muda a situação profundamente, não mudar nada pode bem ser trair-se.

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