François Vallançon recebe-nos no escritório da sua grande casa nos arredores
de Paris. Não tem gabinete na Universidade, já que, como nos explica, acha que a criatividade do investigador se exerce melhor
no seu ambiente próprio, em privacidade. Como poderia ter todos os meus livros comigo num gabinete? diz-nos. Olhamos em volta
uma vasta biblioteca, sobretudo de clássicos, e disparamos a primeira questão:
PFC: O Senhor Professor tem proferido conferências e colóquios em várias partes do mundo. Esteve
mesmo mais que uma vez em congressos em Portugal. Qual a situação da carreira docente em França, e como a compararia com a
das universidades que conhece?
FV: Bom, não sou propriamente um globe-trotter... E preferiria concentrar-me na Universidade
francesa, que conheço obviamente melhor.
Devo antes de mais sublinhar que a situação das universidades francesas é muito diversa da das universidades
de outros países porque, desde Napoleão, o ensino é estatizado, e os docentes são funcionários. Todavia, conservamos ao mesmo
tempo uma certa tradição de liberdade as garantias e prerrogativas universitárias dos tempos medievais que são, afinal, o
que vai tornando suportável a regulamentação.
PFC: Quer dizer que não o preocupa a idade das normas...
FV: São as normas e sobretudo os princípios e o espírito mais antigos (e mais consolidados, para
além de um frenesim legiferante de modernismos e modismos) que sustenta a Universidade, em todo o mundo. Não tenho dúvidas
disso... embora não seja politica ou educativamente correcto dizê-lo...
Aliás, as normas têm um valor relativo na Universidade...
PFC: Um jurista pode compreender isso. Mas não será melhor explicá-lo?
FV: Com todo o gosto. Os juristas deveriam ser os primeiros a desmistificar alguns mitos... O que
sucede é que existe uma distância entre o direito e os factos, que umas vezes é ténue, mas outras vezes se torna imensa. Mesmo
nas Faculdades de Direito, as práticas e os não-ditos têm por vezes mais importância e até de sentido que os textos oficiais.
É por isso que tudo o que eu lhe disser tem de ser entendido em termos hábeis.
PFC: A diferença entre o legal e a realidade é assim tão notória?
FV: Avalie por si. Segundo a lei, já não há Faculdades de Direito, só Universidades de Direito;
deixou de haver uma única Universidade nacional, para haver universidades regionais ou locais; também não haveria mais centralismo
financeiro, mas autonomia. E contudo, na prática, verifica-se que se o acessório se suavizou, o essencial tem-se mantido sempre
tão rigorosamente fechado como no tempo de Napoleão. Ou até mais fechado ainda, na medida em que as técnicas de controlo se
refinaram. O resultado é uma mistura do melhor e do pior, inacessível aos olhos do profano, e mesmo difícil de explicar pelas
gentes do serralho...
PFC: Do serralho? Isso tem a ver com patrões e mandarins...
FV: Exactamente. Vejo que não se esqueceu do calão universitário francês....Mas sejamos mais claros:
A norma pretende que se entre no corpo docente das universidades pela via do concurso igualmente aberto a todos os talentos,
sem distinção de classe social, de origem étnica, de convicções religiosas ou cor política. Mas a prática é a de uma cooptação
muito fechada, onde as pessoas colocadas acolhem como futuros colegas quem lhes agrada, e recusam os demais.
PFC: Mas... e a qualidade? A Universidade francesa tem uma reputação internacional firmada... Não
há muitos anos, vimos num ranking internacional a Universidade de Paris II colocada em primeiro lugar entre as do continente
europeu...
FV: O sistema funciona mais bem que mal, porque a maior parte dos professores são competentes, mas
o sistema é malsão na medida em que é sub-reptício e não permite, por hipótese, qualquer recurso.
PFC: Os professores são competentes mesmo se a selecção é como diz. Não será porque têm tempo para
estudar? Gostaríamos muito de saber se é verdade que os Portugueses é que dão poucas aulas... Na verdade, falta-nos tempo
para a investigação... Com aulas, e com reuniões, com burocracias...
FV: Quanto a férias, temos em França 15 dias de férias à volta do Natal, 15 dias na Páscoa, e 2
meses de férias de Verão: Julho e Agosto. Embora haja exames na primeira metade de Julho.
PFC: Mas muitos exames são só orais, não é verdade?
FV: Sim. Seria impossível corrigir em tempo útil centenas e centenas de exames escritos. Além disso,
tal decorre de uma distribuição do tempo entre diferentes provas de diversos graus É que temos também vários tipos de teses
a avaliar...
PFC: Começamos a compreender isso mais claramente entre nós, a perceber que alguém tem de corrigir
os exames escritos se se quiser que os professores tenham tempo para ler cada vez mais teses... A menos que sejam teses mesmo
muito pequenas.
E como se ingressa na carreira docente?
FV: Entra-se no corpo docente universitário depois de pelo menos 5 anos, frequentemente 6 anos de
universidade, a seguir ao liceu (ensino secundário): 4 anos para a maîtrise, mais 1 ou 2 DEA (diploma de estudos aprofundados).
PFC: Quer dizer que os estudantes saem da universidade em Direito, só com 4 anos de curso? É o que
alguns querem impor em Portugal, alegando o exemplo europeu....
FV: Raramente se limitam à maîtrise. Quase todos prosseguem normalmente os estudos mais um
ou dois anos com o DEA ou com um DEES (diploma de estudos superiores especializados), que se destina a uma preparação menos
teórica que o DEA. E muitos prosseguem ainda para o doutoramento.
PFC: Isso significa que, na prática, a duração normal dos estudos de direito é de 5 ou 6 anos...
FV: Sim, cada vez mais caminha no sentido do aumento da permanência estudante na universidade...
O que é um bem, mas também pode ser um mal...
PFC: E depois de entrar, como se processa a progressão na carreira?
FV: Depois, é-se nomeado assistente por uma comissão, a pedido de um professor que conheça o candidato.
O posto de assistente está em vias de desaparecimento, e é hoje substituído por um ATER (attaché temporaire denseignement
et de recherche)...
PFC: Nós diríamos... um monitor. Mas porque se quer acabar em França com os assistentes? Cá também
há a mesma tentação...
FV: No nosso caso é uma questão financeira. Como se deu aos assistentes a titularização
imediata após a sua nomeação....
PFC: A nossa nomeação definitiva...
FV:...pretendeu-se depois recuar para precarizar a vinculação desses docentes que entram. Mas nem
sequer se vai rever o regime dos assistentes
PFC: acaba-se com a categoria e substitui-se por uma com menos direitos...
FV: É uma forma de fazer as coisas... De qualquer maneira, o objectivo deste novo posto é ainda
o de permitir que se faça o doutoramento com remuneração, e que os candidatos à docência mostrem sua aptidão para o ensino
enquadrando grupos de TD (trabalhos dirigidos)
PFC: As nossas aulas práticas... Em todo o caso, vejo que em França não se deixa que se entre para
a Universidade só depois do doutoramento, e que se acompanha o doutorando também enquanto docente. Isso parece positivo. E
qual a duração da tese de doutoramento?
FV: Outro caso de diferença entre legalidade e prática. A duração actual da tese é oficialmente
de 4 anos, com possibilidade de prolongamento de um ou dois anos. De facto, os pedidos de derrogação são numerosos e geralmente
deferidos. Penso que a duração ideal seriam 5 anos... Depois do doutoramento, que não é de Estado, mas de cada universidade,
o docente deve submeter-se ao julgamento científico da Habilitação, para ter permissão para dirigir trabalhos científicos
PFC: O que, portanto, não é automático com um simples doutoramento, como em Portugal. E fica-se
então professor
FV: Não. Depois, os docentes têm de pedir a entrada no corpo dos maîtres de conférences...
PFC: A carreira é diferente da nossa... Talvez uma categoria que abrange o Associado e o Auxiliar...
Como se consegue entrar nesse corpo?
FV: Por uma dupla escolha: primeiro, no interior de uma Universidade; depois, no CNU (Conselho Nacional
das Universidades). Oficialmente, só a qualidade científica conta. Praticamente, se se é apoiado por um Mestre poderoso, entra-se.
Se se não é conhecido, nem apoiado, fica-se de fora.
PFC: Suspeitamos que as coisas não ficam por aí....
FV: Longe disso. Depois de se ser nomeado maître de conférences, pode fazer-se o concurso
de agregação para se ser titular de uma cadeira (cátedra?), concurso que, também ele, é em larga medida uma cooptação. Sem
entrar em pormenores, digamos que há dois tipos de concurso de agregação: um concurso interno uma via longa e um concurso
externo uma via curta.
PFC: Mas será possível ser-se professor (no vosso caso maître de conférences ou professeur)
apenas com doutoramento?
FV: Jamais. Em qualquer caso, é preciso pelo menos 10 anos de trabalho depois de
concluído o liceu...
PFC: Falemos agora do tempo lectivo....
FV: As obrigações são, em média, de 150 horas por ano, mas compreendendo nessas 150 horas já todo
o tipo de obrigações e complementos... Grosso modo, um professor dá de 3 a 5 horas de aulas por semana.
PFC: E dizem que nós, com 6, 9 ou até 12 horas, trabalhamos pouco... E como é a formação para as
carreiras jurídicas?
FV: Para se ser juiz ou advogado, são necessários pelo menos 7 anos de estudos superiores. Um juiz
tem de ter a maîtrise, e um DEA praticamente ao mesmo tempo que cursa o Instituto de Estudos Judiciários, mais um curso
na Escola Nacional de Magistratura, mais 2 ou 3 anos de estudos ou de estágios na mesma escola antes de exercer como juiz.
Um advogado também necessita da maîtrise, se um DEA praticamente ao mesmo tempo que o IEJ, mais um concurso para o
Centro regional de formação na profissão de advogado, mais dois anos de estudos ou de estágios num escritório antes de exercer
a profissão de advogado.
PFC: É portanto uma ficção que se possa exercer qualquer profissão jurídica com apenas 4 anos de
formação universitária.
FV: Sem dúvida. Há muito que aprender, na teoria e na prática.
PFC: Outro dos mitos modernos da reforma universitária é a avaliação do mérito, designadamente na
vertente pedagógica. Poderemos aprender algo com a França?
FV: (sorrindo) Não há, em França, nas Universidades, qualquer avaliação pedagógica oficial. Ao contrário
do que acontece no ensino primário e secundário, onde os professores são alvo de classificações. Mas, na prática, todos os
professores conhecem a reputação dos seus colegas, e têm-na em consideração. Há uma espécie de avaliação pedagógica quando
os professores pedem transferência de universidade, sobretudo quando pretendem ascender a Paris. A este propósito, compara-se
a carreira universitária à concha de um caracol: começa-se bem longe de Paris, depois vai-se progredindo, por movimentos circulares
que tendem para o centro, e termina-se na capital.
PFC: Mas há critérios para esse prestígio informal, certamente...
FV: A avaliação resulta na verdade das publicações e do seu sucesso, das conferências e dos êxitos
do conferencista... e das relações e das amizades. À luz da lei, os professores (catedráticos) são iguais. Mas no que toca
à reputação, coisa inefável, ainda mais complexa que a lei, são desiguais. Os estudantes julgam-nos, mas informalmente. Seria
melhor formalizar esta avaliação, como nos EUA? Não é solução de modo algum desejável para a França, por causa das querelas
ideológicas e políticas. Não tenho conhecimentos para falar de Portugal...
PFC: Não tenho dúvidas que por essas e por outras razões, uma tal avaliação seria catastrófica entre
nós... Mas se há muitas coisas em que estamos latinamente em consonância, numa matéria delicada, mas vital, creio que o abismo
é grande. Agora que há euro, não deveríamos comparar salários?
FV: (sorrindo) Posso dar-lhe os nossos números por alto, e por agora em francos....
PFC: Faremos a conversão em euros...
FV: Os maîtres de conférences começam com cerca de dez mil francos brutos mensais, e os professores
um pouco mais. No fim da carreira, e segundo índices, escalões, classes e situação familiar... ganharão entre 21 000 e 40
000 francos mensais. Os catedráticos não podem exercer um outro trabalho assalariado, salvo derrogação estrita, mas são livres
de exercer a advocacia, e assim aumentar consideravelmente os seus rendimentos...
PFC: Poderia resumir a situação dos docentes em França?
FV: Em suma, o docente universitário francês goza de uma grande estabilidade de emprego,
sente alguma falta de liberdade, mas teria dificuldade em ter mais do que a que possui, tem um salário modesto mas regular,
e usufrui de uma reputação social invejável.
PFC: Muito obrigado, Senhor Professor. Acho que, afinal, e apesar de tudo, teríamos muito a ganhar
com o exemplo francês... E até não nos repugnaria nada a modéstia dos vossos salários
(sorrisos) (publicado in Ensino Superior)