M@ils do meu Moinho
MOLEIROS LIVRES
1. Um Cavaleiro. O gémeo espanhol do nosso Camões, esse Cervantes antes tão esquecido, voltou em força, de braço dado com seus Quixote
e Sancho. Vai daí, as metáforas intelectuais quotidianas conhecem nova moda: chegaram as Dulcineias, os Rocinantes, e…
os moinhos de vento.
Moinhos são metáforas de mistério e de liberdade: Os deuses
moem muito devagar, enquanto há quem leve
água ao seu moinho, se bem que outros não façam farinha. Mas, quando me falam em moinhos, vem-me sempre à memória um nome: Menocchio.
2. Um Moleiro.
Indomável opinador e mártir da liberdade foi Domenico Scandella, dito Menocchio (n. 1532), cuja saga seria contada e escalpelizada
pelo historiador Carlo Ginzburg no seu já clássico O Queijo e os vermes (Il formaggio e i vermi), publicado
em Turim pela Einaudi há precisamente trinta anos.
Menocchio era um moleiro, homem livre e questionador que discorria
e discutia com quem lhe passasse pelo moinho. E a Inquisição acabou por liquidá-lo, pois claro! As inquisições – e são
sempre tantas, tão diligentes e tão variadas – nunca perdoam aos moleiros livres. Os moleiros livres, nas sociedades
fechadas (até nas abertas!) são sempre quixotes… Mas com uma vantagem: a
sua ligação aos elementos (cozem no fogo cereal da terra, com água e vento) torna-os num híbrido de Quixote e Sancho. Aliás,
o verdadeiro herói de Cervantes é precisamente essa dupla.
3. Um Escritor. Nesta coluna
que agora estreia, minha sala de visitas, irei conversando virtualmente como um livre moleiro. Bem mais à vontade que Menocchio,
aqui me sentarei a dialogar, pois me sinto ao abrigo de moléstias: estamos num Estado de Direito, para mais “Democrático”…
Hoje pouco sobrará além do justificar o título da coluna, que obviamente lembra também Alphonse Daudet, e as Cartas do seu Moinho. Mas há ainda um problema a pôr.
4. Do Sociólogo ao Taxista. Em vésperas da sua nomeação como Director na Universidade de Oñati, o sociólogo do Direito finlandês
Paavo Usitalo teve comigo uma iluminadora conversa. À mesa de um antigo abrigo de peregrinos, adaptada aos novos goliardos
da Universidade, perguntámo-nos: haverá hoje profissões livres?
Além do Professor Universitário, com a sua liberdade de
ensino, que todavia se encontra cada vez mais cerceada, e do Advogado, cuja imagem, infelizmente, é cada vez menos romântica...
concluímos que também o motorista de táxi se podia contar entre os tradicionalmente
menos sufocados: sem a presença permanente de patrão ou senhor, com tempo e cabeça livres para conversar com gente que vai
e vem e conta suas estórias e angústias, dono de si mesmo, da sua forma de trabalhar, e por isso responsável e livre. Não
é só o imaginário do clássico romance rosa John, Chauffeur russo…
Durarão os novos moleiros livres? Os taxistas serão, certamente, os que resistirão mais...
É difícil controlá-los mais que pelo taxímetro e pelo imposto… Ou pensar-se-á em vigilância com câmaras, sob pretexto
dos assaltos? Mais segurança, menos liberdade?
5. E um Filósofo. Problemas destes, contudo, teremos apenas enquanto o Homem se não libertar do trabalho (pela criatividade
e progresso técnico e espiritual), o qual deriva do latim tripalium: um instrumento
de tortura.
Liberdade, trabalho, profissão, ócio: temas para relembrar no centenário
de Agostinho da Silva (nascido no Porto a 13.II.1906), autêntico moleiro livre…
O qual, não por acaso, teve um inolvidável programa televisivo a que chamou Conversas
Vadias. Que título!
II.
CHOQUE DE MENTALIDADES
Se a Liberdade de expressão é sagrada para o Ocidente,
a Sacralidade do Profeta é a grande Liberdade do Islão. Nem um lado, nem o outro, podem ser “imparciais”.
A liberdade de expressão está longe de adquirida. Comprimem-na interesses económicos, pressões políticas, e preconceitos
politicamente correctos. Há tabus consoante os meios: aqui não podes dizer isto, ali é aquilo que tens que calar… Não
só nos media. Até em simples círculos sociais. É um problema de mentalidades.
Tudo o que se possa dizer sobre as caricaturas de Maomé deriva inelutavelmente da mentalidade com que cada um
se sintoniza. Até as posições mais doiradas de rigor jurídico estão impregnadas dos respectivos (pré-)conceitos.
Seria simples pregar a conciliação, porque os exageros podem fazer perigar o círculo essencial do direito ao respeito
pelos símbolos e crenças religiosas, de um lado, e a liberdade de expressão, na veste do direito à paródia, por outro.
Temos porém frequentemente visto que quem se mete a ridicularizar gratuitamente realidades carregadas de emotividade
colectiva, como a religião, os símbolos políticos, ou personagens históricas, tem em regra pouca imaginação e até déficit de gosto. Muitas vezes falta gravemente ao respeito devido às convicções dos outros – além de produzir
efeitos de reacção quiçá nocivos a qualquer militantismo da sua parte, se porventura o houvesse.
Do mesmo modo, as reacções violentas em prol de altos valores ou bens jurídicos (abstraindo do caso), e mesmo
algumas indignações pacíficas exageradas, muitas vezes levam a supor que o seu modelo ideal seria o da censura e da inquisição.
Tudo ponderado, parece-nos possível que a liberdade de expressão abrigue magnanimemente mesmo obras de mau gosto
e insensatez; mas que ao menos a protecção dos símbolos religiosos acautele os sentimentos dos crentes. O critério de avaliação
passa por muitos factores, até artísticos e comunicacionais. Uma grande obra de arte, absolutamente genial, que fosse considerada
religiosamente “blasfema”, teria que ser protegida enquanto obra de arte. O general De Gaulle diria: “Não
se prende Voltaire”. Em contrapartida, um panfleto vulgar que fira os sentimentos religiosos gratuitamente, sem arte,
e sem “graça”, fica muito mais a descoberto…
Mas, enquanto simples panfleto, merecerá protecção? Não nos parece que a simples agressão a um colectivo deva
merecer mais protecção que o insulto a um indivíduo. Será que o mero insulto é protegido pela liberdade de expressão? E, do
mesmo modo, será que a agressão física, verbal e simbólica (como o queimar de bandeiras) ficam a coberto do juízo de reprovação,
por ser reacção de um grupo poderoso, seja ele qual for?
Não queremos certamente que a liberdade proteja irresponsáveis que disparam afrontas ferindo sentimentos religiosos
respeitáveis, nem que exaltados retaliem, praticando actos de vandalismo. A liberdade de expressão tem limites, como a religiosa.
No mundo em que os Direitos Humanos são a religião universal, não há muitos absolutos. Antes há limites, que passam pelo respeito.
E se os cartoons chocaram, seria nos tribunais que os visados se deveriam manifestar.
Ou em manifestações pacíficas.
O problema está em saber também até que ponto se reclama: manifesta-se apenas um repúdio ordeiro, ou exige-se
que rolem cabeças e se editem proibições?
A liberdade de expressão já corre perigo: o polícia interior de uns já os faz reprimirem-se; e a vontade de dar
escândalo já deve estar a forjar noutros todos os dislates à sombra da protecção da Liberdade.
Entretanto, o “direito a blasfemar” já deu lugar ao “dever de pedir desculpa”?
A questão está longe de ficar por aqui…
III.
Na polémica sobre se Cristo tinha uma bolsa (v. vg. O Nome da Rosa, de Umberto Eco), vou pelo sim: tinha, mas era património comum de todos os apóstolos. Não fora
dada nem por César, nem por Pilatos, nem por Herodes: era fruto do suor do rosto de todos.
Na Universidade de São Paulo, no
V Seminário Internacional Religião
e Educação