ENCONTROS E DESENCONTROS NO BRASIL NASCENTE
E NOS PRIMÓRDIOS DE PORTUGAL
I.
Introdução
1. Desafios
do Novo Romance Histórico
Não sabemos até que ponto se encontrará reconhecido o valor histórico e filosófico do novo romance histórico. Há nele
e significativamente lembramos Marguerite Yourcenar como figura cimeira deste novo modo toda uma preocupação de trabalhar
sobre fontes a que não nos habituaram os primeiros epígonos de Sir Walter Scott. Assistimos assim a um resgate, a um renovo,
e até a uma enorme pujança do romance histórico nos últimos anos. A fortuna que tal tipo de literatura encontra hoje junto
das massas de cultura média é assim bem merecida, e encontra nas elites pensantes e documentadas plena coonestação, pois ao
aventuroso, romanesco, pitoresco ou exótico da sua dimensão lúdica se junta honesto estudo, que não raro se nos desvenda nos
seus alicerces e andaimes.
Ora, com essa preocupação documental surge um grande interesse do público mais especializado pelos factos narrados
neste género, que se revestem para o historiador tout court de uma outra credibilidade.
Por outro lado, talvez até porque suficientemente amparados na clara distinção entre o que são factos históricos, documentados,
e o que é efabulação (o que não raro é comunicado ao leitor, em paratextos normalmente finais), os autores não temem recortar
com clareza as suas teses. Elas são isso mesmo, teses, um hiper-argumento por cima e por dentro da trama ficcional, e, como
ela, também não são História nem historiografia.
2. Historiografia Jurídico-política implícita no romance histórico
Um dos temas que nos tem interessado na indagação sobre resíduos e derivações, originalidades e influências em História do Direito, e muito em especial do Direito de língua portuguesa,
é o do momento do encontro entre as civilizações. Para depois seguir a pista das relações estabelecidas, até hoje. Penosíssima
mas apaixonante tarefa.
A filosofia jurídica já hoje não desdenha a procura da filosofia implícita na literatura. Talvez seja chegada a vez
de a historiografia jurídica, por seu turno, lhe passar a conferir um mais evidente lugar. E parece que tal começa a ocorrer,
e mesmo entre nós.
II. Dois Encontros Civilizacionais
1. Margens do Douro e Baía de Guanabara
Ora precisamente dois livros recentes do género romance histórico têm a feliz virtualidade de procurarem surpreender
dois momentos cruciais do encontro de civilizações que nos interessam. O primeiro, Uma
Deusa na Bruma, transporta-nos aos primeiros contactos entre Romanos e Calaicos. O segundo, Rouge
Brésil ou Pau Brasil ou Vermelho Brasil, efabula sobre a relação triangular que no Brasil do século XVI se estabeleceu entre franceses, portugueses e índios
autóctones.
No séc. XVI, na Baía de Guanabara, teria lugar a ocupação portuguesa de um forte fantasma em que durante um tempo utópico
se pretendeu fundar uma França no Brasil. Ou, talvez melhor, arquitectar uma França austral em vez do Brasil
No séc. II, junto ao rio Douro, talvez cinquenta mil Calaicos perderam
a vida e seis mil a liberdade frente às legiões de Roma: para este últimos, fora, em geral, o seu primeiro encontro.
Num caso como noutro, procura-se uma visão compreensiva, assimiladora de todo o legado anti-etnocêntrico do século
que findou. Mas vejamos até que ponto.
2. Entre Romanos e Calaicos
João Aguiar confessa a sua dupla veneração (ou interesse afectivo) pelos Calaicos e pelos Romanos, ambos nossos antepassados,
e sem os quais (uns e outros) este Portugal não teria sido, evidentemente, possível. A personagem central, o brácaro de Tarróbriga Túrio, encontra-se dividida até
ao fim entre a consagração ao deus guerreiro Bandua, que apela à resistência ao invasor, e o apelo da deusa Nábia, que desde
sempre sabia que um novo mundo está a nascer ao qual de nada vale opor resistência. Uma outra perspectiva da ambivalência deste encontro é a do seu amigo
mais velho Antubelo, que tendo caído nas mãos dos romanos e entre eles permanecido escravo (mas havendo sido muito bem tratado),
conseguiria finalmente retornar a casa, embora ferido pela nostalgia dos livros, do azeite na comida, de melhor vinhoe de
maior humanidade no tratamento dos prisioneiros, que seus irmãos Calaicos ainda sacrificavam aos deuses, em rituais sangrentos.
3. França Antártica ou Brasil?
Também Jean-Christophe Rufin narra uma derrota. Isso é historicamente inegável. Uma derrota histórica e retumbante.
Há porém uma diferença escatológica essencial entre a derrota calaica e a derrota francesa.
Na romanização total da Península, que se seguiu à derrota primeiro de Lusitanos e depois de Calaicos, podemos hoje
ver uma vitória do processo histórico. Portugal e os mundos que ao Mundo deu seriam também possíveis graças ao legado romano,
desde logo plasmado nessa linguagem universal do direito romano mal necessário à primeira globalização, a lusa (como poderíamos
dizer, juntando as lições de Agostinho da Silva e de Vamireh Chacon).
Já para a fuga dos franceses da pequena ilha na Baía de Guanabara, que
efemeramente ocuparam, retalhados por dissenções religiosas entre católicos e protestantes, fustigados pela doença e sangrando
em constantes deserções, será difícil encontrar qualquer sinal dos tempos anunciador de amanhãs que se conheçam hoje. O autor é insofismavelmente partidário dos franceses, seus compatriotas, como
se pode inferir até da nota final sobre as fontes, onde transparece uma espécie de espanto por esta história não ter tido
na hagiografia patriótica nacional melhor acolhimento. Mas não deixa também de os retratar de corpo inteiro com suas grandezas
e misérias, e de como que os redimir (e com eles ao invasor europeu num discurso que se salva do politicamente correcto por
um estilo e uma psicologia de bom gosto) numa final aliança com os índios (Ersatz
da luta directa com os portugueses) que aliás se segue a uma primeira opção pró-nativista da heróina, da qual só regressará
(não se sabe quanto) pelo amor do príncipe encantado europeu, reencontrado.
Os índios são pintados claramente como os bons selvagens, embora também
Rufin sinta a necessidade da intermediação de um mutante, de origem europeia (inglesa), Pay-Lo, para no-los apresentar. A
mesma personagem independente, com algum desprendimento, como convém, afirma que, tal como alguns franceses, chegara ao Brasil
antes de Cabral o qual só teria aportado em 1501!. As comemorações do achamento estão, assim erradasteremos de concluir.
E sobretudo os protagonistas.
Se Antubelo reflecte as nossas reticências direito-humanistas (também ditas antropodikeiras)
hodiernas contra os sacrifícios humanos dos Calaicos, Pay-Lo será confrontado com a missão de procurar primeiro explicar e
depois abolir (pretensamente sem os moralismos e os etnocentrismos dos jesuítas) a antropofagia dos índios do Brasil. Em todo
o caso, Colombe, a heroína convertida ao despojamento índio, se encarregará de nos evidenciar (e bem) o contraste entre a
natureza e a perversão cultural dos franceses, que na ruptura derivada da discussão teológica sobre a Presença de Cristo na
hóstia teria a sua admirável apoteose.
Implacável o autor é apenas para com os portugueses. O governador Mem de Sá surge como um semi-mentecapto, nas poucas
passagens do livro que seriam cómicas se não rondassem o grotesco e o inverosímilalém de injustificadamente sectário. Apenas
balbucia (o autor diz que grunhe em guisa de resposta cortês) a sua monomania, que, aliás, pela fuga dos franceses se não viria a verificar
(ironia tragicómica!):
No Rio, vai ser preciso fazer a guerra.
Fá-lo repetidamente, sem mais palavras. No Brasil, tem medo ao sol, e anda de chapéu de aba larga enterrado. Pode ser
até que haja documentos que nisso falem. Mas de que lado? E mesmo que assim fosse, não é isso um tópico adjuvante desta tese
que devemos transcrever:
Nunca os Portugueses haviam experimentado tamanha impressão de poder. Na Europa, eram demasiado pequenos para desafiar
quem quer que fosse, e, nas Américas, ainda só haviam ocupado costas desertas, ou quase. Mas, desta vez, iam combater ?.
Que admirável conhecimento da história militar portuguesa!...
A figura de Villegagnon, o comandante francês utopista que desejou um dia disputar terreno aos portugueses para construir
nos trópicos uma França Antártica é extraordinariamente bem pintada numa evolução trágica que o leva de um humanismo optimista,
desejoso de conciliar os cristãos desavindos, a um cinismo desesperado que precisamente teria eclodido no momento em que,
em debate com os calvinistas, descobriria que eles não gostavam do Homem. Acabará por perseguir os protestantes pelo ferro
e pelo fogo, e por aceitar de Portugal trinta mil escudos pelos seus eventuais direitos sobre Guanabara.
III. Conclusão
São muito diferentes a tarefa e a radicação de um e outro dos autores. Calaicos e Romanos são antepassados remotos,
cujo sangue se uniu nas nossas veias. Franceses e Portugueses, povos tradicionalmente amigos, contudo estão vivos. E há um
Brasil que fala português e não uma França Antártica.
Julgamos ser interessante meditar sobre os partidos que tomamos insensivelmente às vezes, militantemente noutras, até
em demanda e em construção de identidades - ainda hoje, na História, pela
História (por causa dela e através dela). Num tempo que afecta o anti-etnocentrismo até ao limite do excesso (quando não do
ridículo como quando assimila raças de cães a raças de cachorros ou a cores de cabelos), não deixa de ser irónico que sejamos por gregos ou por troianos, combatendo
hoje do lado de vencedores ou de perdedores, que encarnemos os que julgamos haverem sido nossos antepassados, de sangue, domicílio
ou alma.
E também é interessante ver como parece haver dois pesos e duas medidas no julgamento do etnocentrismo: o dos Descobridores
e Colonizadores clássicos é demonizado. Mas precisamente outros etnocentrismos subtis parecem mais tolerados, e até com algum
crédito.
A reflexão de João Aguiar é perturbadora, e lembra o julgamento do celtista DArbois de Jubainville sobre os romanos
o invasor romano, ao ter sido civilizador, como que conquistou por dentro. Cintando o celtista francês:
Roma conquistou-nos definitivamente (); o que foi sinal de servidão converteu-se num elemento da nossa própria natureza
Mas haverá sempre quem prefira Vercingetorix ou Viriato a César. Até que
ponto e com que razão ou coração, são contos mais largos
Em todo o caso, além de um e outro dos livros merecerem uma releitura em busca de usos, costumes, ecos de leis e outras
coisas de direito mais ou menos explícitas, valeria a pena reler as fontes do francês, e ver outras, que não terá considerado
eventualmente.
Mas mais que tudo um e outro livro nos falam do passado para o presente e para o futuro. Em épocas de profunda viragem,
como a presente, há sempre a possibilidade de optar por Bandua ou por Nábia. Como é sempre possível haver ou não haver uma
França no Brasil
Jean-Christophe RUFIN
Rouge Brésil, trad. port. de Isabel St. Aubin, Paul-Brasil,
Porto, Asa, 2002, 460 pp. Edição Brasileira: Vermelho
Brasil.
(editado in
Videtur, n.º 25)