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HETEROXIAS, de Paulo Ferreira da Cunha

M@ils do meu moinho

I
 

M@ils do meu Moinho

 

 

MOLEIROS LIVRES

 

1. Um Cavaleiro. O gémeo espanhol do nosso Camões, esse Cervantes antes tão esquecido, voltou em força, de braço dado com seus Quixote e Sancho. Vai daí, as metáforas intelectuais quotidianas conhecem nova moda: chegaram as Dulcineias, os Rocinantes, e… os moinhos de vento.

Moinhos são metáforas de mistério e de liberdade: Os deuses moem muito devagar, enquanto há quem leve água ao seu moinho, se bem que outros não façam farinha. Mas, quando me falam em moinhos, vem-me sempre à memória um nome: Menocchio.

2. Um Moleiro. Indomável opinador e mártir da liberdade foi Domenico Scandella, dito Menocchio (n. 1532), cuja saga seria contada e escalpelizada pelo historiador Carlo Ginzburg no seu já clássico O Queijo e os vermes (Il formaggio e i vermi), publicado em Turim pela Einaudi há precisamente trinta anos.

Menocchio era um moleiro, homem livre e questionador que discorria e discutia com quem lhe passasse pelo moinho. E a Inquisição acabou por liquidá-lo, pois claro! As inquisições – e são sempre tantas, tão diligentes e tão variadas – nunca perdoam aos moleiros livres. Os moleiros livres, nas sociedades fechadas (até nas abertas!) são sempre quixotes… Mas com uma vantagem: a sua ligação aos elementos (cozem no fogo cereal da terra, com água e vento) torna-os num híbrido de Quixote e Sancho. Aliás, o verdadeiro herói de Cervantes é precisamente essa dupla.

3. Um Escritor. Nesta coluna que agora estreia, minha sala de visitas, irei conversando virtualmente como um livre moleiro. Bem mais à vontade que Menocchio, aqui me sentarei a dialogar, pois me sinto ao abrigo de moléstias: estamos num Estado de Direito, para mais “Democrático”… Hoje pouco sobrará além do justificar o título da coluna, que obviamente lembra também Alphonse Daudet, e as Cartas do seu Moinho. Mas há ainda um problema a pôr.

4. Do Sociólogo ao Taxista. Em vésperas da sua nomeação como Director na Universidade de Oñati, o sociólogo do Direito finlandês Paavo Usitalo teve comigo uma iluminadora conversa. À mesa de um antigo abrigo de peregrinos, adaptada aos novos goliardos da Universidade, perguntámo-nos: haverá hoje profissões livres?

Além do Professor Universitário, com a sua liberdade de ensino, que todavia se encontra cada vez mais cerceada, e do Advogado, cuja imagem, infelizmente, é cada vez menos romântica... concluímos que também o motorista de táxi se podia contar entre os tradicionalmente menos sufocados: sem a presença permanente de patrão ou senhor, com tempo e cabeça livres para conversar com gente que vai e vem e conta suas estórias e angústias, dono de si mesmo, da sua forma de trabalhar, e por isso responsável e livre. Não é só o imaginário do clássico romance rosa John, Chauffeur russo

Durarão os novos moleiros livres? Os taxistas serão, certamente, os que resistirão mais... É difícil controlá-los mais que pelo taxímetro e pelo imposto… Ou pensar-se-á em vigilância com câmaras, sob pretexto dos assaltos? Mais segurança, menos liberdade?

5. E um Filósofo. Problemas destes, contudo, teremos apenas enquanto o Homem se não libertar do trabalho (pela criatividade e progresso técnico e espiritual), o qual deriva do latim tripalium: um instrumento de tortura.

Liberdade, trabalho, profissão, ócio: temas para relembrar no centenário de Agostinho da Silva (nascido no Porto a 13.II.1906), autêntico moleiro livre… O qual, não por acaso, teve um inolvidável programa televisivo a que chamou Conversas Vadias. Que título!

 

 II.

CHOQUE DE MENTALIDADES

 

Se a Liberdade de expressão é sagrada para o Ocidente, a Sacralidade do Profeta é a grande Liberdade do Islão. Nem um lado, nem o outro, podem ser “imparciais”.

 

A liberdade de expressão está longe de adquirida. Comprimem-na interesses económicos, pressões políticas, e preconceitos politicamente correctos. Há tabus consoante os meios: aqui não podes dizer isto, ali é aquilo que tens que calar… Não só nos media. Até em simples círculos sociais. É um problema de mentalidades.

Tudo o que se possa dizer sobre as caricaturas de Maomé deriva inelutavelmente da mentalidade com que cada um se sintoniza. Até as posições mais doiradas de rigor jurídico estão impregnadas dos respectivos (pré-)conceitos.

Seria simples pregar a conciliação, porque os exageros podem fazer perigar o círculo essencial do direito ao respeito pelos símbolos e crenças religiosas, de um lado, e a liberdade de expressão, na veste do direito à paródia, por outro.

Temos porém frequentemente visto que quem se mete a ridicularizar gratuitamente realidades carregadas de emotividade colectiva, como a religião, os símbolos políticos, ou personagens históricas, tem em regra pouca imaginação e até déficit de gosto. Muitas vezes falta gravemente ao respeito devido às convicções dos outros – além de produzir efeitos de reacção quiçá nocivos a qualquer militantismo da sua parte, se porventura o houvesse.

Do mesmo modo, as reacções violentas em prol de altos valores ou bens jurídicos (abstraindo do caso), e mesmo algumas indignações pacíficas exageradas, muitas vezes levam a supor que o seu modelo ideal seria o da censura e da inquisição.

Tudo ponderado, parece-nos possível que a liberdade de expressão abrigue magnanimemente mesmo obras de mau gosto e insensatez; mas que ao menos a protecção dos símbolos religiosos acautele os sentimentos dos crentes. O critério de avaliação passa por muitos factores, até artísticos e comunicacionais. Uma grande obra de arte, absolutamente genial, que fosse considerada religiosamente “blasfema”, teria que ser protegida enquanto obra de arte. O general De Gaulle diria: “Não se prende Voltaire”. Em contrapartida, um panfleto vulgar que fira os sentimentos religiosos gratuitamente, sem arte, e sem “graça”, fica muito mais a descoberto…

Mas, enquanto simples panfleto, merecerá protecção? Não nos parece que a simples agressão a um colectivo deva merecer mais protecção que o insulto a um indivíduo. Será que o mero insulto é protegido pela liberdade de expressão? E, do mesmo modo, será que a agressão física, verbal e simbólica (como o queimar de bandeiras) ficam a coberto do juízo de reprovação, por ser reacção de um grupo poderoso, seja ele qual for?

Não queremos certamente que a liberdade proteja irresponsáveis que disparam afrontas ferindo sentimentos religiosos respeitáveis, nem que exaltados retaliem, praticando actos de vandalismo. A liberdade de expressão tem limites, como a religiosa. No mundo em que os Direitos Humanos são a religião universal, não há muitos absolutos. Antes há limites, que passam pelo respeito. E se os cartoons chocaram, seria nos tribunais que os visados se deveriam manifestar. Ou em manifestações pacíficas.

O problema está em saber também até que ponto se reclama: manifesta-se apenas um repúdio ordeiro, ou exige-se que rolem cabeças e se editem proibições?

A liberdade de expressão já corre perigo: o polícia interior de uns já os faz reprimirem-se; e a vontade de dar escândalo já deve estar a forjar noutros todos os dislates à sombra da protecção da Liberdade.

Entretanto, o “direito a blasfemar” já deu lugar ao “dever de pedir desculpa”?

A questão está longe de ficar por aqui…

 

III.

A COMUM BOLSA DE CRISTO

 

A palavra “tolerância” não me entusiasma. Alguém disse que tolerância é aquilo a que nos resignamos quando não podemos proibir. Tolerar provoca úlceras.

Além disso, a tolerância é ainda potencialmente discriminatória. A convivência social sã entre cosmovisões alternativas e mutuamente exclusoras necessita de uma base de sustentação mais profunda. Em matéria religiosa, tem de ser um denominador comum a crentes e não crentes. Ora a tolerância parte de um sujeito para um objecto: do crente ou do não crente para “o outro”. Apenas um espaço de inclusão geral e sem centro pode garantir essa paz vital para cada sociedade e para o Planeta.

A expansão das ideias de tolerância pode, segundo alguns especialistas, conduzir a relativismo, cepticismo, niilismo, no fundo, à indiferença aos valores e ao laxismo social. Se se tolera tudo, como vai reagir-se ao intolerável? E não se veja aqui falta de moderação, que tão precisa é hoje: não aproveitando quaisquer contrariedades para fazer voz grossa e proclamar os princípios em bravata inconsequente ou temerária, mas também não engolindo em seco todas as afrontas, em evidente cobardia.

Outra resposta possível é a laicidade. Algumas manifestações de pretensa laicidade são apenas anti-clericais, e mesmo anti-religiosas. Não podem considera-se sequer manifestações de tolerância. Contudo, Cristo, ao mandar dar a César o tributo de César e a Deus o que Lhe pertence, ou ao recusar-se a dividir uma herança entre irmãos, é um dos primeiros e práticos defensores da laicidade.

Na pureza das ideias, a laicidade é a possibilidade de criação de zonas de separação e de zonas de convivência, comportando a possibilidade de vários níveis de relação com o religioso: desde a presença deste, em condições equitativas, em certos espaços públicos (desde logo, na instrução), até à situação mais radical de completa separação das esferas do público estadual e do religioso, mas sem qualquer agressão ou militantismo anti-crenças.

Trata-se do reconhecimento de que as pessoas têm uma esfera de vida religiosa, na qual são livres; a qual porém não se deve misturar com a cidadania, a esfera da sua vida pública. Não se trata, como em algumas formas de totalitarismo, de tolerar um culto privado, ou a liberdade de consciência sem expressão, à espera que, sem rito e comunidade, a crença definhe e morra. É apenas uma separação entre público (aquém ou além da religião) e privado (ainda que privado- público, com total liberdade religiosa, incluindo a de culto e até de proselitismo não agressivo).

            Esta ideia é difícil de aceitar quer pelos ateus militantes, que gostariam que o Estado se empenhasse na extinção do que consideram ser um alfobre de reaccionarismo e de superstição, quer por crentes educados na ideia de uma religião totalitária, ou mais ou menos oficial, em que poder terreno e poder divino se fundiam. Contudo, numa ordem jurídica e política de perfeita separação e natural convivência (e eventual colaboração, na separação – nada obsta) entre a esfera do Estado e a esfera das religiões, a depuração que nalgumas delas se verificaria seria grande antídoto contra a sua corrupção. Em todas as instituições há sempre adeptos não por convicção, mas por cálculo. Pensamos, por isso, que a autonomia total, desde logo de recursos, e o não auxílio do poder (e muito menos conúbio com ele) são o melhor alimento de todas as fés puras, e a pior machadada nos fenómenos políticos ou económicos sob capa religiosa.

Cremos, em consequência, que faltam movimentos, com sincera participação inter-religiosa (e com abertura a não crentes empenhados nessa renovação mental), que reclamassem a liberdade da religião face a todas as formas de não autonomia: hegemonia, privilégio, favor, conúbio, ou satelização e dependência com o que não é religioso. Nomes? Fé (ou Espiritualidade) e Laicidade, Religião e Constituição, Fides et Forum, Sagrado & Profano

            Na polémica sobre se Cristo tinha uma bolsa (v. vg. O Nome da Rosa, de Umberto Eco), vou pelo sim: tinha, mas era património comum de todos os apóstolos. Não fora dada nem por César, nem por Pilatos, nem por Herodes: era fruto do suor do rosto de todos.

            Na Universidade de São Paulo, no

 V Seminário Internacional Religião e Educação

 

 

 

 

 

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